Orgias na Grécia, Roma e posterior

 


A imagem popular de gregos e romanos entregues a bacanais permanentes precisa ser corrigida: o que a elite praticava em termos de festas, ritos e excitações coletivas existe e é bem documentado, mas trata-se de um fenômeno social localizado, ritualizado e marcado por diferenças de status; o «povão» vivia sob outras rotinas e normas. Na Grécia antiga, o termo órgia (ὄργια) designava originariamente ritos mistéricos e extáticos vinculados a cultos como o de Dioniso e aos mistérios órficos, cerimônias que envolviam música, dança, estados de transe e símbolos de fertilidade; esses ritos podiam incluir componentes sexuais, simbólicos ou performativos, mas o objetivo central era religioso e iniciático, não simplesmente a liberação hedonista sem sentido (NÄSSTRÖM, 2003). Ao mesmo tempo, a vida sexual grega refletia uma forte estrutura de status: para os homens cidadãos livres havia graus de tolerância a relações com parceiros de status inferior (escravos, metecos, prostitutas) e práticas socialmente reconhecidas como a pederastia em determinados contextos educativos e aristocráticos; para as mulheres cidadãs esperava-se recato público e a manutenção da honra doméstica, de modo que a «liberdade» sexual se dava sobretudo no âmbito masculino e como marcador de distinção social (DOVER, 1978; HALPERIN, 1990). Em Roma, a sexualidade pública e privada também se organizava por linhas de poder e hierarquia: a diferença entre ser ativo e ser passivo, entre cidadão e escravo, entre chefe de família e serva, determinava o sentido moral e político das práticas sexuais muito mais do que um vetor modernamente binário «hetero/ homo». As festas e banquetes das elites romanas — espaços de ostentação, consumo e exibição — podiam incorporar erotismo explícito; o Senado reagiu politicamente à expansão e à autonomia de cultos bacanais, promulgando o célebre senatus consultum de Bacchanalibus (186 a.C.) exatamente porque percebia nesses ritos um risco à ordem pública e à autoridade (LIVY; análise moderna em FLOWER, 2002; DIEPENBROEK, 2024). Importante enfatizar que, mesmo quando relatos literários descrevem imperadores e aristocratas imersos em luxúria (as narrativas sobre Calígula, Nero, Heliogábalo, por exemplo), os historiadores devem ler essas fontes à luz de intenções retóricas, denúncias políticas e estigmatização moral — isto é, há sempre o elemento do exagero e da construção literária da infâmia (BEARD; fontes clássicas). Em suma, Grécia e Roma apresentam práticas que, a olhos modernos, parecem orgiásticas em alguns contextos, mas que eram em muitos casos ritos religiosos, demonstrações de poder ou comportamentos regulamentados por hierarquias sociais.

A transformação mais profunda sobre o modo de ver e normatizar o sexo começa com a cristianização do Império e a consolidação da autoridade eclesiástica: a passagem do tardio mundo romano para a sociedade cristã trouxe uma nova gramática moral que reinterpretou o corpo, o desejo e a finalidade do ato sexual. Estudos clássicos sobre o direito canônico e a moral sexual medieval mostram como, entre os séculos V e XV, a Igreja construiu um vasto aparato normativo que regulava casamento, adultério, concubinato, sodomia, masturbação e outras práticas, insistindo na função reprodutiva e na castidade como ideais (BRUNDAGE, 1987). A virada cristã não apagou totalmente práticas pré-cristãs de prazer, mas reorganizou o campo simbólico: certos ritos e festas foram reprimidos, outros foram reinterpretados e a delimitação entre pecado e virtude tornou-se institucionalmente operativa. Para as elites, que antes dispunham de espaços privados de exibição e festa, a nova moral introduziu dispositivos de controle e discursos de sujeição ao hábito religioso; para as camadas populares, a moral cristã intensificou formas de vigilância comunitária e de regulação dos comportamentos sexuais, ainda que a aplicação dessas normas tenha sido frequentemente desigual e permeada pela negociação cotidiana (BRUNDAGE, 1987; FOUCAULT, 1978). Ou seja: a «gandaia» não desapareceu — foi disciplinada, deslocada e, muitas vezes, condenada pelos discursos oficiais.

No mundo contemporâneo, a sequência histórica resulta numa tensão entre liberação, normatização e persistência de hierarquias. A modernidade, sobretudo desde o século XIX e com acelerações no século XX (liberação sexual, movimento feminista, movimento LGBT+), ampliou a visibilidade e a pluralidade de práticas sexuais; entretanto, pesquisas contemporâneas em sexualidade mostram que crenças culturais, gênero, religião, classe social e condições de saúde continuam a mediar fortemente o que é considerado aceitável, desejável ou estigmatizado (KHUMALO et al., 2020; estudos transnacionais recentes). Hoje não é raro ver práticas que lembram em forma (não em conteúdo religioso) as festas da elite antiga — festas privadas exclusivas, turismo sexual de luxo, redes de libertinagem fechadas —, mas elas coexistem com uma maior democratização do erotismo (pornografia, plataformas digitais, maior autonomia feminina em diversos contextos). Ainda assim, as desigualdades persistem: enquanto parcela da população usufrui de espaços e mercados sexuais sofisticados, outras parcelas continuam a enfrentar estigmas, criminalização ou restrições legais e religiosas. Em consequência, a narrativa de que «a elite sempre se joga e o povão segue a religião» conserva validade analítica, porém deve ser submissa a matizes: as práticas de elite mudam de forma e tecnologia, o povo tem seus próprios espaços de prazer e resistência, e a moral pública alterna entre repressão, tolerância e hipocrisia.

Portanto, uma leitura crítica e historiograficamente informada indica que «orgias» — entendidas no sentido moderno de festas puramente libidinosas — não são o núcleo explicativo do que se passava na Antiguidade; as celebrações extáticas na Grécia eram ritos sagrados com componentes simbólicos (NÄSSTRÖM, 2003), e os banquetes romanos eram lugares de poder e exibição cuja visibilidade produzia inquietação política e moral (LIVY; FLOWER, 2002). A cristianização reorganizou o regime de sexualidade, substituindo em grande medida as justificativas ritualísticas e aristocráticas por um regime de pecado, confissão e direito canônico (BRUNDAGE, 1987). No presente, convivem maior pluralidade e persistentes desigualdades: as formas de erotismo e «gandaia» deslocaram-se para novas tecnologias, mercados e circuitos sociais, enquanto as normas culturais e religiosas continuam a delimitar experiências e estigmas. Esse quadro complexo confirma, com nuances e evidências acadêmicas, a observação inicial: a elite historicamente teve acesso privilegiado às formas espetaculares de prazer, o povo seguiu e segue padrões normativos diferentes — e a mudança entre um regime e outro (Antiguidade → Cristianismo → modernidade) envolve menos rupturas bruscas e mais rearranjos de poder, moralidade e prática social (DOVER, 1978; BRUNDAGE, 1987; NÄSSTRÖM, 2003; KHUMALO et al., 2020; DIEPENBROEK, 2024).

___E. E-Kan 

Referências

BRUNDAGE, James A. Law, Sex, and Christian Society in Medieval Europe. Chicago: University of Chicago Press, 1987.

DIEPENBROEK, M. Conspiring against the State? Livy’s account of the Bacchanalian affair and modern readings. Historia/Review, 2024. (artigo discutindo Flower 2002 e o Senatus Consultum de Bacchanalibus)

DOVER, K. J. Greek Homosexuality. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1978.

FOUCAULT, Michel. The History of Sexuality. Vol. 1: An Introduction. New York: Pantheon Books, 1978.

KHUMALO, S. et al. Intersectionality of cultural norms and sexual behaviours. Reproductive Health, 2020.

NÄSSTRÖM, Britt-Mari. The Rites in the Mysteries of Dionysus: The Birth of the Drama. Scripta Instituti Donneriani Aboensis / journal, 2003.

LIVY (LIVIUS), Titus. Ab Urbe Condita (passages on the Bacchanalia — Senatus Consultum de Bacchanalibus, 186 a.C.) — fontes clássicas.

FLOWER, H. I. Rereading the Senatus Consultum de Bacchanalibus. Capítulo em coletânea sobre religião e política romana, 2002.

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