"A história como Ciência"


A história é Ciência? Um tipo de Ciência? Ou o que?  


Dizer que a história se tornou uma ciência no século XIX significa reconhecer que ela passou a se organizar com métodos próprios, diferenciando-se tanto da filosofia especulativa de Hegel quanto do positivismo sociológico de Comte. O que antes era tratado como narrativa literária, crônica política ou filosofia da história ganhou contornos de disciplina acadêmica, com critérios de rigor, crítica documental e pretensão de objetividade. Leopold von Ranke simboliza essa virada, ao propor que a tarefa do historiador era mostrar o passado "wie es eigentlich gewesen" – tal como realmente aconteceu – a partir da análise de fontes primárias (BENTIVOGLIO in: MALERBA, 2010, p. 133).

A história, nesse sentido, assume uma autonomia intelectual, deixando de ser apenas reflexão filosófica ou crônica política para se apresentar como ciência do humano no tempo. Essa nova ciência, contudo, não era igual às ciências naturais. Enquanto a física ou a biologia buscavam leis gerais e regularidades, a história se ocupava do singular, do irrepetível e do contingente. Como apontam os metódicos franceses, “os fatos históricos são tão diferentes dos das outras ciências que, para estudá-los, é indispensável um método diferente” (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946, p. 152, apud PETUBA, 2003, p. 93).

Diferente da filosofia hegeliana, que via a história como realização do Espírito, a ciência histórica rankeana recusava teleologias e sistemas fechados. Para Ranke, cada época era imediata a Deus e tinha valor em si mesma (BENTIVOGLIO in: MALERBA, 2010, p. 146), não sendo apenas uma etapa rumo ao progresso. O contexto dessa virada é o século XIX, marcado por transformações políticas e sociais profundas: a consolidação dos Estados-nação, as guerras de unificação, a industrialização e o fortalecimento da universidade como espaço de saber especializado.

Não por acaso, foi após a Guerra Franco-Prussiana que jovens franceses buscaram na Alemanha os modelos de crítica documental e organização acadêmica, trazendo para a França a inspiração de Ranke e transformando-a na chamada Escola Metódica (PETUBA, 2003, p. 93-95). Nesse ambiente, a história passou a ser vista como útil ao Estado, mas também como disciplina com pretensões científicas próprias. O historiador, nesse novo cenário, deixou de ser apenas literato ou filósofo para se tornar um profissional de ofício, com atributos claros: amor à verdade, erudição documental, imparcialidade, espírito universal e humildade diante dos limites do saber histórico (BENTIVOGLIO in: MALERBA, 2010, p. 150). Como sintetiza José Carlos Reis, o historiador metódico narrava “fatos realmente acontecidos e tal como eles se passaram” (REIS, 2004, p. 18, apud PETUBA, 2003, p. 95), buscando um reflexo fiel do passado.

Ao mesmo tempo, Ranke lembrava que a história também era arte, pois exigia narrativa, imaginação controlada e talento literário para dar vida às fontes (RANKE, 2010, p. 142). Em suma, a ciência histórica do século XIX nasceu híbrida: empírica e documental, mas também narrativa e interpretativa. Diferente da física, não buscava leis universais, e diferente da filosofia hegeliana, não forçava os fatos a caberem em esquemas metafísicos. Seu conhecimento era particularista, atento ao singular e à verdade do passado. Essa herança, apesar das críticas posteriores, consolidou o estatuto da história como disciplina acadêmica e moldou a identidade do historiador como profissional. Foi assim que a história conquistou, com Ranke e a Escola Metódica, o seu passaporte para o clube das ciências.

A crítica da história como Ciência, o dogmatismo e o tabu  na universidade brasileira

Na universidade brasileira contemporânea marcada por forte hegemonia de correntes ideológicas à esquerda, questionar a cientificidade da História tornou-se um verdadeiro tabu. A afirmação “a História é Ciência, e ponto final” funciona muitas vezes como um dogma que não admite contestação. O problema é que tal postura ignora que a dúvida sobre o caráter científico da História acompanha a disciplina desde o século XIX. Autores clássicos como Wilhelm Dilthey já defendiam que a História pertence ao campo das “ciências do espírito” (Geisteswissenschaften), cujo objetivo não é explicar leis universais como a Física, mas compreender significados humanos: “nós explicamos a natureza, mas compreendemos a vida psíquica” (DILTHEY, 1883, p. 12). Ou seja, relativizar a cientificidade da História não é novidade negacionista, mas herança de uma tradição intelectual respeitável.

Durante o século XX, a própria Escola dos Annales desmontou a pretensão positivista herdada de Ranke e dos metódicos. Marc Bloch afirmou que “a incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado” (BLOCH, 2001, p. 54), mas jamais propôs uma História que imitasse os moldes das ciências naturais. Lucien Febvre, por sua vez, atacava o “pecado capital do historiador”, que seria reduzir a História a uma mera coleção de fatos (FEBVRE, 1977, p. 22). Ambos, portanto, relativizaram a cientificidade estrita e apontaram a História como saber crítico, vivo, aberto, em diálogo com outras áreas.

Autores ainda mais recentes intensificaram essa crítica. Hayden White, em sua obra Metahistory, defendeu que toda narrativa histórica é estruturada como discurso literário, carregada de escolhas retóricas e ideológicas (WHITE, 1992). Michel Foucault também desferiu golpes contra a neutralidade, afirmando que todo conhecimento histórico está atravessado por relações de poder (FOUCAULT, 1979). Ou seja, questionar o caráter científico da História não é destruir sua legitimidade, mas reconhecer sua especificidade epistemológica.

No entanto, dentro da universidade brasileira, tal questionamento é frequentemente tratado como um “crime acadêmico”. Estudantes que ousam relativizar a cientificidade ou até mesmo a utilidade da História para a vida são muitas vezes rechaçados, cancelados e acusados de “enfraquecer a disciplina”. José Carlos Reis já alertava que a História não deve se esconder sob a máscara da neutralidade científica, mas assumir-se como saber crítico: “o historiador não descreve fatos tal como aconteceram; ele reconstrói, interpreta, e por isso produz sentido” (REIS, 2004, p. 19). Porém, quando a militância ideológica se sobrepõe à reflexão epistemológica, tais nuances desaparecem e o dogmatismo ocupa o lugar do debate.

Criticar o caráter científico da História, longe de ser negacionismo, significa reconhecer que a disciplina sempre conviveu com tensões entre ciência, arte e filosofia. Carlo Ginzburg, por exemplo, propôs o “paradigma indiciário”, comparando o historiador a um detetive que trabalha com sinais e indícios, não com leis universais (GINZBURG, 1989). Jörn Rüsen (1990) também insiste que a História é um saber rigoroso, mas cuja função é produzir orientação de sentido para a experiência humana, e não reduzir o passado a equações. Assim, quem hoje questiona o dogma da cientificidade não está “enfraquecendo” a disciplina, mas resgatando uma tradição crítica que vai de Dilthey a Foucault, de Bloch a Ginzburg. O triste é ver que, em vez de espaço para reflexão, a universidade brasileira muitas vezes oferece tribunais ideológicos.

Concluindo, penso que a História entrou no “clube das ciências” como penetra, usando o passaporte rankeano, e justamente por isso, nunca deixou de ser contestada. A diferença é que, enquanto no passado essa contestação gerava novos caminhos intelectuais, no presente universitário brasileiro ela pode gerar cancelamento.

O paradoxo é evidente: a mesma disciplina que nasceu da crítica à filosofia e ao positivismo, hoje muitas vezes proíbe a crítica a si mesma.

Compreendo que a História, como disciplina e ofício, especialmente, no Brasil, batalhou muito para sair da condição de “literatura erudita” e se firmar como disciplina universitária séria, com método, rigor documental e legitimidade científica. Ou seja, compreendo que afirmar a cientificidade da História foi, por muito tempo, uma estratégia de sobrevivência acadêmica. O problema é que essa defesa, necessária lá atrás, muitas vezes se cristalizou como dogma, e não mais como questão de debate.

O problema é que na universidade brasileira contemporânea, com o agravante da polarização ideológica, muitos departamentos de História, sobretudo, muitos professores de história, se filiam em partidos políticos, sobretudo de esquerda, e isso faz com que discussões epistemológicas virem trincheiras. Se você questiona o caráter científico da História, até mesmo a utilidade da história para a vida (por um viés filosófico, tipo Nietzscheano), corre o risco de ser lido não como alguém que está dialogando com Dilthey, Febvre, White ou Rüsen, e que está colaborando para o fortalecimento da História como uma Ferramenta Útil ao Progresso Humano, mas sim, você acaba sendo visto como alguém que está “enfraquecendo a disciplina” ou “abrindo brecha para negacionismos”.

Isso, esse cancelamento de quem é crítico (sobretudo, crítico construtivo da História), ao meu ver,  é  terrorismo intelectual e nos faz questionar: QUE TIPO DE HISTÓRIA ESTÁ SENDO ENSINADA NAS UNIVERSIDADES BRASILEIRAS? PARA QUE ELA SERVE? A QUEM ELA SERVE? Quer dizer, em vez de responder com debate, alguns (professores e colegas acadêmicos bitolados) preferem enquadrar o questionador como inimigo.

Com efeito, francamente, repito, máxima data vênia às opiniões em contrário, não vejo a história como Ciência; sim, penso que a história tem método próprio, documental, rigor e legitimidade e contribui para o progresso humano.

Contudo, penso que a história só é útil para a vida, em termos de conhecimento, aos moldes do que diz o Ginsburg,  no sentido dela uma Ferramenta de Investigação e o historiador um detetive que trabalha com sinais, indícios e materialidade para reconstruir a cena dos fatos do passado, interpretando-os à luz do presente, com tudo o que lhe constitui enquanto humano, inclusive com as manias, defeitos, falhas, limitações, conceitos, pre-conceitos, mas também honestidade intelectual, bom senso, razão, a depender do caráter intelectual e do nível intelectual do investigador (Historiador, trabalhador de História).

Nunca é demais ressaltar que para mim, a Filosofia está acima de todas as demais áreas de conhecimento e é A Mãe da Ciência como a conhecemos (e isso não significa que ela não seja também uma ferramenta útil para o progresso humano), pela Dúvida, Dúvida para compreender e avançar, entre tentativas e erros. Todas as demais áreas abaixo, Teologia, História, Sociologia, Economia, até mesmo a Tecnologia, e tudo mais são meras ferramentas auxiliares do progesso humano e, por isso, auxiliares da Filosofia, enquanto A Grande Ferramenta de Investigação do Pensamento. Cada uma dessas ferramentas auxiliares têm a sua utilidade, mas nenhuma se equipara a Filosofia (e não estou falando apenas da Filosofia Grega, Ocidental) mas da Filosofia como 'A Maior Área de Conhecimento Humano', que esteve na virada de chave mental do Homo Sapiens há mais de 70 mil anos atrás, na Revolução Congnitiva, e que estará até no último humano, nos fins dos tempos da Espécie Humana neste Universo e além. Por isso, penso que todo aquele que tenta colocar a Filosofia abaixo de qualquer outra área o faz por medo da Dúvida, medo do Conhecimento de Fato, Horror à Verdade Verdadeira e, sobretudo, por desejo de controle. A Filosofia Liberta, e Liberdade de Verdade aterroriza quem quer ser escravo da própria ignorância e de toda presunção de saber. Por fim, questionar o caráter científico da história e sua utilidade para a vida, faz de mim um Herege aos olhos dos historiadores dogmáticos? Que seja. A Ciência cura doenças (muitas delas), já viram a história curar alguma doença? (Só para provocar).

__E. E-Kan



Referências

BENTIVOGLIO, Julio. In: MALERBA, Jurandir (org.). Lições de História: O caminho da ciência no longo Século XIX. Rio de Janeiro: FGV, 2010. p. 133-154.

LANGLOIS, Ch. V.; SEIGNOBOS, Ch. Introdução aos estudos históricos. Lisboa: Renascença, 1946.

PETUBA, Rosangela. A Escola Metódica e o Método Histórico. [s.l.]: [s.n.], [s.d.].

RANKE, Leopold von. “Sobre o Caráter da Ciência Histórica”. In: MALERBA, Jurandir (org.). Lições de História: O caminho da ciência no longo século XIX. Rio de Janeiro: FGV, 2010. p. 141-154.

REIS, José Carlos. A História entre a Filosofia e a Ciência. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

DILTHEY, Wilhelm. Introdução às ciências do espírito. Lisboa: Edições 70, 1883.

FEBVRE, Lucien. Combates pela História. Lisboa: Editorial Presença, 1977.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

REIS, José Carlos. A História entre a Filosofia e a Ciência. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da História. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1990.

WHITE, Hayden. Metahistória: a imaginação histórica do século XIX. São Paulo: Edusp, 1992.









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