Da Primeira República ao Estado Novo: continuidades, rupturas e o projeto da modernidade brasileira (1889–1945)
Introdução
A transição do Império para a Primeira República, em 1889, representou um dos momentos mais complexos da história política brasileira.
Mais do que uma simples troca de regime, tratou-se de um processo de reacomodação institucional, social e simbólica, no qual antigos e novos grupos de poder disputaram o sentido da modernidade nacional.
A historiografia contemporânea — de autores como Maria Tereza Chaves de Mello, José Murilo de Carvalho, Lilia Schwarcz, Ângela de Castro Gomes, Carolina Dantas, Mônica Velloso, entre outros — demonstra que a República não foi uma ruptura total com o passado, mas uma continuidade disfarçada sob novos símbolos.
Ao mesmo tempo, as tensões acumuladas entre 1889 e 1930 criaram as condições para a ascensão de Getúlio Vargas e o Estado Novo (1937–1945), um regime que realizou o projeto de modernização republicano, porém sob bases autoritárias.
Desenvolvimento
Segundo Maria Tereza Chaves de Mello (2007), a Proclamação da República foi antes de tudo um acordo entre elites, e não um movimento popular.
Em A República Consentida, a autora descreve a queda da monarquia como uma mudança simbólica, marcada pela dessacralização do imperador e pela criação de um novo discurso cívico, que buscava legitimar o poder militar e civil.
Em outro texto, A Modernidade Republicana (2009), Mello explica que o novo regime se construiu como um projeto pedagógico, que pretendia educar o cidadão republicano, civilizar o povo e inserir o Brasil no mundo moderno.
Essa modernidade, contudo, foi excludente: a cidadania permaneceu restrita às elites, e a maioria da população continuou marginalizada do processo político.
Na mesma perspectiva crítica, Ângela de Castro Gomes e Marta Abreu (2009) revisitam o conceito de “República das oligarquias”.
Para elas, embora o sistema político fosse controlado, havia formas de participação e associativismo, como clubes, sindicatos e imprensa popular.
Essas experiências revelam que o período não foi de completa apatia social, mas um laboratório político, onde se testaram as primeiras práticas republicanas de cidadania.
Lilia Schwarcz e Heloisa Starling (2015) reforçam essa visão ao colocar o povo no centro da narrativa.
Em Brasil: uma biografia, mostram como as ruas se tornaram espaços de expressão política: greves, revoltas e protestos urbanos foram manifestações concretas de cidadania, ainda que criminalizadas.
As autoras destacam que a República criou novos símbolos e mitos nacionais, mas não conseguiu eliminar as desigualdades raciais e sociais herdadas do escravismo.
O mesmo tema é tratado por José Murilo de Carvalho (2003), em Os três povos da República.
O autor identifica três níveis de participação: o “povo das estatísticas”, majoritariamente excluído; o “povo das urnas”, formado por uma minoria votante controlada pelas oligarquias; e o “povo das ruas”, que se manifestava em greves e revoltas.
Essa divisão revela o caráter contraditório da República: um regime que se proclamava democrático, mas que produziu uma cidadania limitada e desigual.
No plano social, Cláudio Henrique de Moraes Batalha (1989) contesta a ideia de que o operariado republicano era homogêneo e revolucionário.
Em Uma outra consciência de classe, mostra a presença de um sindicalismo reformista, legalista e negociador, que buscava conquistar direitos sem romper com o sistema.
Já Helieth Saffioti (1976) amplia o debate ao incluir a condição feminina.
Para ela, a República manteve o patriarcado e a exploração da mulher, cujo trabalho era desvalorizado e cuja educação servia à domesticidade.
Assim, a modernidade republicana, embora discursiva, continuou excludente no campo de gênero e classe.
No eixo religioso, Jacqueline Hermann (2006) destaca os movimentos de Canudos, Juazeiro e Contestado, mostrando que a religiosidade popular funcionou como forma de resistência diante da racionalidade e do autoritarismo republicanos.
A fé, reprimida pelo Estado laico, expressava a busca do povo por justiça e sentido num contexto de exclusão.
A questão da identidade nacional foi analisada por Carolina Vianna Dantas (2009), que explora os debates sobre mestiçagem e preconceito de cor.
Ela demonstra que intelectuais da Primeira República reinterpretaram o racismo científico e transformaram a mistura racial em símbolo de brasilidade, ainda que permeado por contradições.
Essa busca por identidade se desdobrou, segundo Mônica Pimenta Velloso (2003), no modernismo, movimento que uniu arte e política na tentativa de definir o “ser brasileiro”.
Para Velloso, o modernismo não rompeu com o passado, mas aprofundou a reflexão sobre a nação iniciada pela geração de 1870, aproximando cultura popular, ciência e nacionalismo.
Por fim, Marieta de Moraes Ferreira e Surama Conde Sá Pinto (2006) abordam a crise dos anos 1920 como o desfecho do modelo oligárquico.
A urbanização, o tenentismo e o surgimento das classes médias desestabilizaram a “política do café com leite”.
A Revolução de 1930, liderada por Vargas, simbolizou o colapso da Primeira República e o início de um novo ciclo político centralizador.
Conclusão
A leitura integrada desses autores mostra que a Primeira República foi uma modernidade incompleta — um regime que pretendia modernizar o país, mas sem democratizá-lo.
Houve avanços institucionais e simbólicos, como o federalismo, o civismo e o discurso da ciência, mas persistiram o autoritarismo, o clientelismo e a desigualdade social.
O Estado republicano construiu o ideal de cidadania, mas manteve o povo sob tutela, como bem observou José Murilo de Carvalho.
A crise da década de 1920 revelou os limites desse modelo e abriu caminho para o Estado Novo (1937–1945).
Como mostra a leitura historiográfica mais ampla (Mello, Gomes, Ferreira, Rodrigues), Vargas representou tanto a continuidade das ideias republicanas de ordem e progresso quanto a ruptura com o liberalismo das oligarquias.
O Estado Novo consolidou a centralização, industrializou o país e criou direitos sociais, mas o fez sob um regime autoritário e paternalista.
Assim, a modernidade republicana se realizou, mas de forma controlada — uma modernidade autoritária, que uniu o ideal de progresso à repressão política.
Entre 1889 e 1945, o Brasil percorreu o caminho da República sem povo ao Estado sem liberdade.
Ambos os regimes buscaram construir a nação moderna, mas ambos mantiveram a exclusão como sua base.
A trajetória da Primeira República ao Estado Novo, portanto, revela o núcleo das contradições históricas do país: modernização sem democracia e cidadania sob tutela.
___E. E-Kan
Referências
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