Julião Zuzarte de Eça de Queirós e o Capitalismo Tecnocrata Ultra-dinheirista...
Leia atentamente o trecho do Livro, O Primo Basílio, de Eça de Queirós:
[...] "Aos domingos à noite, havia em casa de Jorge uma pequena reunião, uma cavaqueira, na sala, em redor do velho candeeiro de porcelana cor-de-rosa.
Vinham apenas os íntimos. O “Engenheiro”, como se dizia na rua, vivia muito ao seu canto, sem visitas. Tomava-se chá, palrava-se. Era um pouco à estudante. Luísa fazia crochê, Jorge cachimbava.
O primeiro a chegar era Julião Zuzarte, um parente muito afastado de Jorge e seu antigo condiscípulo nos primeiros anos da Politécnica. Era um homem seco e nervoso, com lunetas azuis, os cabelos compridos caídos sobre a gola. Tinha o curso de cirurgião da Escola. Muito inteligente, estudava desesperadamente, mas, como ele dizia, era um tumba.
Aos 30 anos, pobre, com dívidas, sem clientela, começava a estar farto do seu quarto andar na Baixa, dos seus jantares de 12 vinténs, do seu paletó coçado de alamares; e entalado na sua vida mesquinha, via os outros, os medíocres, os superficiais, furar, subir, instalar-se à larga na prosperidade! “Falta de chance”, dizia.
Podia ter aceitado um partido da Câmara numa vila da província, com pulso livre, ter uma casa sua, a sua criação no quintal. Mas tinha um orgulho resistente, muita fé nas suas faculdades, na sua ciência, e não se queria ir enterrar numa terrível adormecida e lúgubre, com três ruas onde os porcos fossam.
Toda a província o aterrava: via-se lá obscuro, jogando a manilha na Assembleia, morrendo de caquexia. Por isso não “arredava pé”; e esperava, com a tenacidade do plebeu sôfrego, uma clientela rica, uma cadeira na Escola, um coupé para as visitas, uma mulher loura com dote.
Tinha certeza do seu direito a estas felicidades, e como elas tardavam a chegar ia-se tornando despeitado e amargo; andava amuado com a vida; cada dia se prolongavam mais os seus silêncios hostis, roendo as unhas; e, nos dias melhores, não cessava de ter ditos secos, tiradas azedadas – em que a sua voz desagradável caía como um gume gelado.
Luísa não gostava dele: achava-lhe um ar nordeste, detestava o seu tom de pedagogo, os reflexos negros da luneta, as calças curtas que mostravam o elástico roto das botas. Mas disfarçava, sorria-lhe, porque Jorge admirava-o, dizia sempre dele: “Tem muito espírito! Tem muito talento! Grande homem!”." [...] (QUEIRÓS, 2020, p. 26-27)
REFLEXÃO
Agora, pensemos:
Personagem de Eça de Queirós, em 'O Primo Basílio', Julião Zuzarte serve de exemplo para pensarmos sobre os milhares, talvez milhões de Homens muito inteligentes, capacitados e preparados, prontos para tudo, mas que a vida simplesmente não lhes sorriu.
Quantos Homens assim existem nesse mundo e na história do mundo?
Homens que tem tudo para dar certo, para serem felizes e serem extremamente úteis, importantes e decisivos dentro da dita 'Sociedade" e não são? Por mais que tentem com todas as forças, não são nada, ou quase nada e vivem como já estivessem mortos em vida, a cada dia mais amargurados e desiludidos de tudo e todos?
Onde está o problema? Nos Homens? Na "Sociedade" decadente, excludente, afundada na mega bolha do abismo social de injustiças, misérias e abusos criminosos, na concentração hedionda da maior parte das riquezas do Planeta nas mãos de menos de 1% de indivíduos que existem nas sombras, nessa 'civilização' que beira ao caos total? Ou na ilusão do ato de esperar? Na vaidade enganadora, autodestrutiva e suicida de querer ser algo importante, parte de algo importante, alguém relevante? Não seria justamente essa a arapuca, a pegadinha sinistra do Capitalismo Tecnocrata Ultra-dinheirista (bem como toda forma de sistemas capitais?) que 'coisificou e gadizou a maioria da humanidade, principalmente através da Algoritmia do Caos IA-lizada', e que arrancou a alma de bilhões de indivíduos como se arranca as vísceras e a espinha de um peixe? Reflitam.
É por essas e outras que penso, digo e repito:
A causa máxima de todos os infortúnios e das tragédias humanas é o apego doentio às coisas materiais.
O apego doentio às coisas materiais ainda vai destruir a humanidade ou, na hipótese mais otimista possível, arruiná-la drasticamente a levando de volta à Idade da Pedra.
O desapego é maior e melhor que o apego. Por isso, não é para qualquer um. Não se deslumbre com nada. A sorte demora e quando chega é fugaz, mas o azar se delonga como a visita imprópria que parece que nunca vai embora. Não se deslumbre com nenhuma grandeza, pois toda grandeza é efêmera.
Não há outra saída senão praticarmos o desapego de tudo, de todos e de nós mesmos, à medida que aumentamos o nosso tesão e o nosso amor pela Vida e os fazemos triunfar sobre todo o ódio, revolta, vazio, medo, terror, ausência de sentido, desolação, solidão, ansiedade, desespero e desesperança, enquanto caminhamos para O Desconhecido dos desconhecidos, como autênticos Viajantes da Luz na Escuridão.
Uma coisa é viver com as coisas, ter coisas, desejar coisas, buscar uma vida melhor, uma qualidade de vida melhor (sem exageros), isso tudo faz parte da natureza humana. Todos querem uma vida melhor, não é? Mas, viver em função de coisas, de ter coisas, de desejar coisas. Viver apegado às coisas como forma máxima de realização existencial, é o que está destruindo o ser humano, a humanidade e o Planeta. As pessoas esquecem que a qualquer momento vão bater as botas.
Viver é ter plena certeza de que, cedo ou tarde, você perderá tudo.
A vida quando acaba, acaba do nada, de repente e tudo o que amamos, tudo o que fomos, sonhamos e gostaríamos de ser estará exterminado, destruído sem dó, nem piedade.
É por isso tudo, que após algum tempo, decidi que: 'Só tenho duas grandes metas práticas nessa vida, praticar constantemente o desapego de tudo e todos e me tornar cada vez mais, ninguém'.
Em suma, não sejamos como o tipo Julião Zuzarte, que se mata em vida, amargurado e depressivo por não alcançar aquilo que acha que lhe faria feliz. Apenas vivamos, tanto quanto possível, sem estresse, aturando o barulho do rolo compressor do Capitalismo Tecnocrata Ultra-dinheirista, o choro e o ranger de dentes daqueles que ainda se iludem com 'uma vida realizada por coisas'.
"Dê seu máximo
Seja sempre o melhor de você mesmo
A sua melhor versão
Seja você mesmo
Seja de verdade
Tenha coragem de usar o seu conhecimento
Aja pelo melhor
Torça pelo melhor
Espere pelo pior
De preferência, com um sorriso no rosto
Ainda que um sorriso insano, só para disfarçar
Esteja sempre pronto para o pior
Assim, o que vier de bom é lucro"
(Viva Para Sempre / Filosofia Insólita)
Referências:
QUEIRÓS, Eça. O Primo Basílio. Jandira, SP: Principis, 2020. 384 p.
KAN, E. E. Filosofia Insólita. Território Kan, BR, 2022.
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