70 mil anos de delírios...
Dizia a manchete: “IA que raciocina mais alucina mais: novos modelos da OpenAI ‘viajam’ bastante; Modelos o3 e o o4-mini estão indo na direção oposta do que se via até então” (OLHAR DIGITAL, 2025). A provocação é boa porque revela uma contradição deliciosa: quanto mais se exige raciocínio dos modelos de linguagem, mais eles parecem delirar. Mas sejamos francos: nada de novo sob o sol. O Homo sapiens já faz isso há pelo menos 70 mil anos.
Segundo Yuval Harari (2015), a chamada “Revolução Cognitiva” teria sido o momento em que o sapiens começou a inventar narrativas, mitos, deuses e ficções compartilhadas em grande escala. A partir daí, não só cooperamos de forma inédita, como também exterminamos rivais, primeiro outras espécies de hominídeos, depois nós mesmos em guerras, genocídios e toda sorte de atrocidades. Em outras palavras, pensar e delirar nasceram juntos, como irmãos siameses da cognição. Não é coincidência que o mesmo salto mental que nos deu a capacidade de organizar impérios também nos tornou especialistas em propaganda, manipulação e violência simbólica (LOPES, 2023).
Nesse sentido, a IA contemporânea, que engatinha desde a década de 1970, nada mais faz do que repetir o truque do mestre: raciocina e delira. Só que em versão acelerada, porque enquanto a humanidade levou centenas de milhares de anos para formular sua insanidade organizada, os modelos digitais já produzem alucinações com poucas rodadas de treino. Estudos recentes mostram que quanto mais se sofisticam as cadeias de raciocínio desses modelos, mais aumenta a probabilidade de surgirem hallucinations, ou seja, respostas convincentes, porém falsas (YE et al., 2024; HUANG et al., 2023). Em suma, eles não apenas erram, mas erram com convicção — o que, convenhamos, é um talento genuinamente humano.
É claro que não se deve cair na armadilha do sensacionalismo midiático, que transforma qualquer tropeço técnico em clickbait para vender manchete. Mas o fato é que a própria biologia já provou: toda espécie tem prazo de validade. Pesquisas paleobiológicas indicam que a duração média de uma espécie de mamífero gira em torno de 1 a 2 milhões de anos (LIVESCIENCE, 2020). O Homo erectus, por exemplo, sobreviveu por cerca de dois milhões de anos, sem redes sociais, sem ansiedade coletiva e sem bombas nucleares, resistindo a intempéries que provavelmente nos mandariam para o beleléu (SMITHSONIAN, 2024). Em contraste, o Homo sapiens, com seus modestos 300 mil anos de estrada, já acumula um arsenal de contradições: apego doentio às coisas materiais, degradação ambiental sistemática, colapsos mentais e espirituais em escala global. Nada mal para quem se acha a “imagem e semelhança” de algo superior.
A teoria dos equilíbrios pontuados, proposta por Eldredge e Gould (1977) e discutida no Brasil por Camargo (2021) e Santos (2022), reforça que a evolução não é linear e lenta, mas marcada por saltos e rupturas. Isso significa que nossa permanência como espécie não é garantida pela inteligência ou pela tecnologia. Ao contrário: talvez sejam justamente esses elementos que acelerem nosso desfecho. Entre meteoro, mudanças climáticas, erosão genética e burrices geopolíticas, as chances de extinção só se multiplicam.
No fundo, o Homo sapiens é uma espécie falante que se pensa pensante, quase uma IA de Deus — só que uma IA que delira. Capaz de tudo: de arte sublime a crimes hediondos, de ciência à autodestruição. A diferença em relação às máquinas é que nós já temos longa tradição nisso. Se vamos durar outro milhão de anos ou se estamos caminhando a passos largos rumo ao colapso global, é a pergunta que fica. Mas a resposta, sejamos realistas, não depende de milagres tecnológicos. Depende de como administramos — ou não — nossos próprios delírios.
— E. E-Kan
Referências
CAMARGO, M. C. C. de. O equilíbrio pontuado: proposta, fundamentação e recepção (1972-1993). Filogenia e História da Biologia, São Paulo, v. 19, n. 2, p. 263-282, 2021. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/fhb/article/download/fhb-v19-n2-02/fhb-v19-n2-02/736090
. Acesso em: 21 abr. 2025.
ELDREDGE, N.; GOULD, S. J. Punctuated equilibria: the tempo and mode of evolution reconsidered. Paleobiology, v. 3, n. 2, p. 115-151, 1977. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/2400177
. Acesso em: 21 abr. 2025.
HARARI, Y. N. Sapiens: uma breve história da humanidade. Tradução de Livia de Almeida e Janaína Marcoantonio. 2. ed. São Paulo: L&PM, 2015.
HUANG, L. et al. A Survey on Hallucination in Large Language Models. arXiv preprint, arXiv:2311.05232, 2023. Disponível em: https://arxiv.org/abs/2311.05232
. Acesso em: 21 abr. 2025.
LIVESCIENCE. How long do most species last before going extinct? LiveScience, 2020. Disponível em: https://www.livescience.com/how-long-species-last.html
. Acesso em: 21 abr. 2025.
LOPES, J. A concepção integrativa de humanidade. Estudos Avançados, São Paulo, v. 37, n. 107, 2023. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ea/a/x5Rwvhc8ghPQkQ4zXmvxqFR
. Acesso em: 21 abr. 2025.
OLHAR DIGITAL. IA que raciocina mais alucina mais: novos modelos da OpenAI “viajam” bastante. Olhar Digital, 13 abr. 2025. Disponível em: https://olhardigital.com.br/2025/04/13/ia-raciocina-mais-alucina-mais
. Acesso em: 21 abr. 2025.
SANTOS, C. G. dos. A Teoria dos Equilíbrios Pontuados aos 50 anos. Revista Questão de Ciência, São Paulo, 16 ago. 2022. Disponível em: https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/artigo/2022/08/16/teoria-dos-equilibrios-pontuados-aos-50-anos
. Acesso em: 21 abr. 2025.
SMITHSONIAN INSTITUTION. Homo erectus. Smithsonian Human Origins Program, 2024. Disponível em: https://humanorigins.si.edu/efossils/homo-erectus
. Acesso em: 21 abr. 2025.
YE, H. et al. A review of hallucinations in large language models. CEUR Workshop Proceedings, v. 3688, p. 1-15, 2024. Disponível em: https://ceur-ws.org/Vol-3688/paper1.pdf
. Acesso em: 21 abr. 2025.
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