A Tríade dos Chifrudos Ilustres: Comte, Conselheiro e Euclides



Cornice não consta, diretamente, nos dicionários de filosofia, sociologia ou história — mas deveria. Se a traição conjugal é um dos mais antigos esportes da humanidade, ela também já produziu surtos de genialidade, massacres e cadáveres ilustres. Este artigo examina três homens atravessados pela mesma sina: Auguste Comte, Antônio Conselheiro e Euclides da Cunha. Todos levaram chifres. Todos reagiram mal. E todos, de algum modo, transformaram a humilhação íntima em destino coletivo.

Comecemos pela França do século XIX. Auguste Comte, aquele mesmo que fundou o Positivismo, escolheu como esposa Caroline Massin, uma ex-prostituta que se reinventava como “costureira” (ARON, 2000). Durante dezessete anos, foi corneado com método. Não reagiu com soco ou tiro, mas com surtos nervosos, internamentos, tentativa de suicídio, e, no fim, louco por uma mulher casada, Clotilde de Vaux, fez a tentativa bizarra de transformar a filosofia positivista numa religião: a chamada “Religião da Humanidade”. O homem que quis enterrar a metafísica inventou missa laica. Freud teria soltado gargalhadas com essa coerência falha.

Corta para o sertão nordestino. Antônio Conselheiro, outro devoto do Positivismo, visto por muitos como um fã da Monarquia, sobretudo, do "Império" de Dom Pedro I e II, também teve a mulher, Brasilina, levada por outro. Pirou. Durante duas décadas, vagou como alma penada, recitando Bíblia e rancor. Acabou fundando Canudos, a mais perigosa seita do Brasil, que botou três vezes o Exército Republicano para correr antes de ser massacrada com trinta mil sertanejos pobres (MONIZ BANDEIRA, 2011). A ironia histórica é irresistível: sem corno, talvez não houvesse a Guerra de Canudos.

E então chegamos a Euclides da Cunha, o literato chifrado e armado. Fã de Conselheiro e 'discípulo' do Positivismo Lunático de Comte, ele completou a tríade. Traído por Anna Emília com Dilermando de Assis, Euclides não esperou vinte anos nem fundou seita. Saiu correndo, arma em punho, e morreu como se morre nos becos de subúrbio: com uma bala na fuça (VENTURA, 1998). O mesmo homem que escreveu Os Sertões (CUNHA, 1902) — talvez o maior monumento literário brasileiro — acabou reduzido a personagem de tragédia passional.O filho do Euclides, também foi morto por Dilermano mais tarde, ao tentar vingar a morte do pai. 

O ponto não é rir da desgraça, embora rir seja inevitável. O ponto é notar que o chifre não foi detalhe de alcova, mas catalisador de delírio e destino. Sem Caroline Massin, talvez não houvesse religião positivista. Sem a mulher adúltera de Conselheiro, talvez não houvesse massacre em Canudos. Sem a devassa Anna Emília com Dilermando de Assis, talvez Euclides vivesse mais vinte anos, mas não entraria para a história como mártir cornificado.

A tese aqui defendida é simples: a cornice, longe de ser acidente biográfico, merece lugar como categoria de análise histórica. Não apenas como piada cruel, mas como gatilho de obras, surtos e massacres que moldaram a modernidade. O que une Comte, Conselheiro e Euclides não é apenas a humilhação, mas a forma como transformaram a dor íntima em acontecimentos coletivos. Se não tivessem sido cornos, provavelmente seriam homens comuns. Pior: talvez não teriam feito nada memorável. Ou como dirá Hegel, claro, em outras palavras muito mais complicadas: 'vai ver, os três cumpriram seu papel na História, dentro dos desejos do Espírito Absoluto, e terminadas suas tarefas, era hora de dizer tchau'. Para Hegel, todos têm um papel a cumprir na História, os grandes ícones mais ainda, e após cumprida a jornada, suas vidas se encerram. Curioso, não? 

___E. E-Kan


Referências

ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Rio de Janeiro: Laemmert, 1902.

MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. O massacre de Canudos. São Paulo: Editora Ensaio, 2011.

VENTURA, Roberto. Euclides da Cunha: uma história de vida. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

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