MetaFÍSICA


A metafísica, em sua origem aristotélica, nasceu como a "filosofia primeira", uma investigação rigorosa sobre os primeiros princípios e causas do "ser enquanto ser".
Seu objetivo era puramente racional: compreender a estrutura fundamental da realidade, abstraindo-se de particularidades para alcançar verdades universais sobre a existência, a substância, a causalidade e a potencialidade. Nesse berço filosófico, não havia espaço para o sobrenatural ou para a fé revelada; a metafísica era uma ciência da razão, distinta e anterior a qualquer consideração teológica.

Curiosamente, o nome "metafísica" não surgiu das mãos de Aristóteles, mas de um acaso editorial. Aristóteles (384-322 a.C.) escreveu uma série de tratados sobre o que chamava de "filosofia primeira" ou "ciência do ser enquanto ser". Cerca de três séculos depois, no século I a.C., o editor e bibliotecário Andrônico de Rodes assumiu a tarefa de organizar os numerosos escritos aristotélicos.

Na disposição dos rolos, ele colocou os livros que tratavam da física (tà physiká – "as coisas naturais") em primeiro lugar. Logo depois desses, colocou os livros mais abstratos, que tratavam do ser, da substância, das causas primeiras e até de Deus. Para diferenciá-los, registrou-os como tà metà tà physiká biblía – literalmente, "os livros que vêm depois dos livros de física".

Com o tempo, a preposição grega metá (que significa "depois" ou "além") passou a ser interpretada também em sentido conceitual: como o estudo "além do físico", daquilo que transcende a realidade material. Assim, um simples acidente de catalogação acabou batizando um dos campos mais duradouros e influentes da filosofia.

No entanto, a história dessa disciplina é um caso paradigmático de como um conceito filosófico técnico pode ser apropriado, transformado e, em última instância, distorcido ao ser assimilado por projetos intelectuais distintos. O primeiro grande momento de inflexão ocorreu com a apropriação da metafísica aristotélica pela teologia medieval. Pensadores como Tomás de Aquino, em sua monumental Suma Teológica, realizaram uma síntese profunda entre a razão filosófica e a fé cristã. Utilizaram o aparato conceitual aristotélico – a noção de causa primeira, de motor imóvel, de ato e potência – para construir argumentos racionais destinados a demonstrar a existência de Deus e a explicar dogmas religiosos. Nesse processo, a metafísica, outrora a ciência mais elevada da razão, tornou-se a "serva da teologia" (ancilla theologiae). Embora seu método fosse ainda racional, seu objetivo final estava agora subordinado à revelação, criando uma associação indelével entre a investigação metafísica e a questão divina (AQUINO, 1274).

A segunda e decisiva distorção surgiu no contexto da modernidade e do avanço da ciência galileana e newtoniana. À medida que a física conquistava o reino da natureza com leis matemáticas precisas, o espaço para a metafísica aristotélica, com suas causas finais, encolhia. Em reação, os filósofos escolásticos tardios começaram a redefinir a metafísica por oposição à física. Se a física tratava do mundo natural, a metafísica foi progressivamente confinada ao domínio do "além-natural" – ou seja, do sobrenatural. Essa mudança semântica, consolidada nos séculos XVII e XVIII, transformou a metafísica, na percepção popular e mesmo em parte da acadêmica, no estudo de entidades transcendentes e invisíveis, um sinônimo para especulações sobre Deus, a alma e os milagres, divorciando-a completamente de sua raiz como ontologia fundamental (CRAIG, 1980).

Essa confusão atingiu seu auge com a filosofia do século XIX. Como bem apontado na tese inicial, pensadores como Hegel e Comte operaram com essa definição distorcida. Hegel construiu um sistema metafísico que era, em essência, uma teodiceia secularizada, uma narrativa da autorrealização do Espírito Absoluto na história – uma visão que misturava dialética filosófica com uma estrutura profundamente religiosa. Comte, por sua vez, em seu positivismo, categorizou o "estado metafísico" como um estágio inferior do pensamento humano, um período de abstrações vazias que meramente substituíam os deuses por conceitos como "Natureza" ou "Razão", mas mantinham a mesma função explicativa dogmática da teologia. Para Comte, metafísica era sinônimo de pensamento obscurantista a ser superado pela ciência positiva, perpetuando assim a noção equivocada de que seu objeto era o sobrenatural (COMTE, 1830).

Atualmente, a situação da metafísica é bifurcada. Por um lado, no âmbito acadêmico-filosófico rigoroso, a metafísica vive um renascimento vibrante desde o século XX, totalmente divorciado de qualquer associação com o sobrenatural. Ela retomou seu objeto originário: a ontologia. Filósofos analíticos como Willard Van Orman Quine, com seu ensaio On What There Is (1948), revitalizaram a discussão sobre o compromisso ontológico, investigando que tipos de entidades realmente existem (universais, particulares, números, proposições). A metafísica contemporânea debate problemas sobre a identidade pessoal através do tempo, a natureza da causalidade, a liberdade e o determinismo, a possibilidade de mundos possíveis e a estrutura fundamental da realidade, utilizando ferramentas de lógica formal e análise conceitual tão rigorosas quanto qualquer ciência (LOWE, 2002).

Por outro lado, na cultura popular, o termo "metafísica" foi quase completamente sequestrado por correntes de pensamento esotérico, espiritualistas e do movimento New Age. Nesse contexto, "metafísica" transformou-se em uma etiqueta para doutrinas que envolvem "leis universais" de atração, "energias cósmicas", curas alternativas e outras crenças que se autodenominam "científicas" ou "filosóficas", mas carecem totalmente de rigor argumentativo ou método crítico. Essa apropriação representa o epítome da distorção histórica, usando o prestígio de um termo filosófico para conferir um ar de legitimidade a práticas e crenças que nada têm a ver com a tradição iniciada por Aristóteles.

Em conclusão, a jornada da metafísica é a história de uma luta pela definição. De sua pureza inicial como investigação do ser, ela foi cooptada pela teologia, depois redefinida pela reação à ciência moderna e, por fim, popularizada como um sinônimo para o espiritual e oculto. Seu estado atual reflete essa batalha: enquanto na academia ela floresce como uma disciplina técnica e rigorosa, no imaginário coletivo ela permanece associada ao sobrenatural. Compreender essa distinção (metafísica não é religião, teologia, sobrenatural, mas sim 'o estudo do ser, enquanto ser') é fundamental não apenas para a clareza filosófica, mas para conter a erosão do significado que ameaça o próprio projeto racional de compreensão do mundo.


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AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. 1274.

ARISTÓTELES. Metafísica. Século IV a.C.

COMTE, Auguste. Curso de Filosofia Positiva. 1830.

CRAIG, William Lane. The Cosmological Argument from Plato to Leibniz. 1980.

LOWE, E. J. A Survey of Metaphysics. Oxford University Press, 2002.

QUINE, W. V. O. On What There Is. Review of Metaphysics, 1948.

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