O Potro no 'O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial', de Laura de Mello e Souza


 As visitas inquisitoriais, os processos feitos no Brasil-colônia, os julgamentos e condenações em Lisboa...


[...] As proposições anticlericais do cordoeiro baiano Isidoro da Silva mereceram maior atenção do Santo Ofício, que nelas viu heresia. Isidoro era natural do Recôncavo, nascido em Santo Amaro e domiciliado em Madre de Deus, na ilha dos Cações, onde vivia “de sua pescaria”. 


Solteiro, cristão batizado e crismado, vira-se às voltas com as visitas do ordinário desde 1725, quando tinha cerca de 35 anos, saindo culpado de concubinato em quatro visitas.


Preso, queixou-se das desordens e violências dos outros presos, que o teriam deixado com “fraquezas no Juízo”: proferira, então, proposições heréticas. 

Em 1729, seguiu para a Inquisição de Lisboa, onde continuou a ser inquirido, pediu reinquirição de testemunhas e protestou ter sempre sido bom cristão. 

A 15 de maio de 1732, foi posto no potro, tendo-lhe sido dado “todo o tormento a que estava julgado, em que se gastaria mais de um quarto de hora”, o pobre gritando “que por amor de Deus o livrassem e tivessem compaixão dele”.

Imediatamente após, foi dada a sentença: Isidoro mostrava sentir, como alguns hereges condenados pela Igreja, que Deus pedira os dízimos para sustentar vadios, os quais eram os clérigos, e que os sacramentos eram escusados e cousa suposta, e que não havia necessidade de confessores porque ele Réu se confessava com fazer só um ato de contrição, e que os meninos, e mais pessoas, que morriam sem batismo iam ao céu, e que não havia nos homens poder para dizer “eu te batizo”, e só Deus era o que batizava, e não os clérigos, e, se o faziam, era para terem ofício com que ganhassem dinheiro sem trabalho. Assim, os sacramentos do Batismo e Penitência eram umas cerimônias, e as palavras que neles diziam eram fantásticas.

Considerado leve suspeito na fé, saiu em Auto Público a 6 de julho de 1732, na igreja do convento de São Domingos, em Lisboa, estando presentes D. João V, os infantes e os inquisidores. Dali seguiria para cumprir degredo de três anos no bispado de Miranda, muito longe do Recôncavo e da ilha dos Cações.

As proposições de Isidoro se assemelham extraordinariamente às do moleiro Menocchio, cujo processo Carlo Ginzburg analisou com brilho em O queijo e os vermes."[...] (p105-106-pdf)


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Potro




Trata-se de uma das várias máquinas de tortura usadas pela Inquisição da Igreja Católica.

O Potro foi usado principalmente entre os séculos XVI (1500-1600) e novamente no Século XVIII (1700-1800), durante o auge da Inquisição em Portugal e em outros tribunais inquisitoriais europeus.

Como funcionava o Potro?

O dispositivo funcionava assim: primeiro, a pessoa ficava dormente. Depois, não conseguia se mover e, se isso durasse muito, a circulação parava e podia até causar necrose.

Para fazer pressão no corpo da vítima, as cordas amarradas nos braços e nas pernas não eram puxadas à mão, mas com uma roldana, facilitando o trabalho do torturador. Embora o Potro (que lembrava um cavalo puxando a corda para estraçalhar uma pessoa durante torturas) não fosse feito para cortar, dava para usar para isso com cordas mais finas, que os torturadores tinham de várias espessuras.

Os inquisidores tentavam arrancar uma confissão sufocando os membros até que os nervos morressem, o que podia levar a amputar as mãos e os pés. (Com História do Potro, 2024).

Em suma, embora segundo alguns autores, como a Laura de Mello e Souza, a Inquisição 'não existiu no Brasil' de fato, o medo de ser levado para Lisboa e aí sim ser julgado pela Inquisição, como Isidoro, deixava o povo perturbado mas também fulo da vida, chegando ao ponto de até espancar inquisidores. Vide:

"De norte a sul, temia-se a ação dos funcionários do Santo Ofício. Em 1646, escrevendo do Rio de Janeiro aos inquisidores de Lisboa, o reverendo Antonio de Maris Loureiro relatava terem os moradores da capitania apedrejado um inquisidor, obrigando-o a se refugiar numa igreja.

A tradição antiinquisitorial dos sulistas remontava ao século XVI. É bem conhecida a fala irada do mameluco bandeirante que, recriminado por Anchieta devido às suas práticas gentílicas e ameaçado pelo jesuíta com a Inquisição, “respondeu que vararia com flechas duas inquisições”. (p. 104)

Com efeito, a Inquisição Católica Portuguesa botava medo mas também despertava o ódio do povo do Brasil colonial.

Importante destacar que o auge da Inquisição Portuguesa ocorreu no século XVII, entre as décadas de 1620 e 1680. Nesse período, houve intensa perseguição aos cristãos-novos (judeus convertidos), acusados de heresia e prática secreta do judaísmo, além de processos por feitiçaria, bigamia e outros "desvios" religiosos. A Inquisição tinha forte presença em Lisboa, Coimbra e Évora.

No Brasil-Colônia, o auge da Inquisição ocorreu no século XVIII, mas de maneira especial durante as visitas inquisitoriais entre 1591 e 1761. Os alvos principais foram cristãos-novos acusados de judaísmo, praticantes de feitiçaria e desvios morais. Mas, também negros, indígenas, mestiços e brancos eram alvos, como vimos no caso do Isidoro, que segundo Laura de Mello e Souza "provavelmente era branco — pois não há no processo alusão à mestiçagem ou origem negra" (p.106), que também foi pego pelos Inquisidores. As capitanias da Bahia e Pernambuco concentraram grande parte das denúncias e processos.

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Referência:


SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. 1ª edição 1986. São Paulo: Companhia das Letras.pdf


Potro. Link: 
https://altoastral.joaobidu.com.br/historia/potro-tortura-inquisicao/ 



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