Nietzsche e seu 'Humano, demasiado humano'


Vamos por partes...


Neste livro, Nietzsche desmonta a moral, a religião e a metafísica na base da porrada, mostrando que tudo é humano — demasiado humano — e que por trás dos valores sagrados só tem erro, ilusão e vontade de poder disfarçada. Ele defende uma nova liberdade de espírito, que questiona tudo e vive além do bem e do mal, com a coragem de enfrentar a vida sem muletas metafísicas. É um soco na cara da filosofia tradicional e um chamado para pensar com as próprias pernas, isto é, com a própria mente. 

Trecho analisado:

[...] "PRÓLOGO1

1. Já me disseram com freqüência, e sempre com enorme

surpresa, que uma coisa une e distingue todos os meus livros, do

Nascimento da tragédia ao recém-publicado Prelúdio a uma

filosofia do futuro: todos eles contêm, assim afirmaram, laços e

redes para pássaros incautos, e quase um incitamento, constante e

nem sempre notado, à inversão das valorações habituais e dos

hábitos valorizados. Como? Tudo somente — humano, demasiado

humano? Com este suspiro dizem que um leitor emerge de meus

livros, não sem alguma reticência e até desconfiança frente à moral,

e mesmo um tanto disposto e encorajado a fazer-se defensor das

piores coisas: e se elas forem apenas as mais bem caluniadas? Já

chamaram meus livros de uma escola da suspeita, mais ainda do

desprezo, felizmente também da coragem, até mesmo da

temeridade. De fato, eu mesmo não acredito que alguém, alguma

vez, tenha olhado para o mundo com mais profunda suspeita, e não

apenas como eventual advogado do Diabo, mas também, falando

teologicamente, como inimigo e acusador de Deus; e quem adivinha

ao menos em parte as conseqüências de toda profunda suspeita, os

calafrios e angústias do isolamento, a que toda incondicional

diferença do olhar condena quem dela sofre, compreenderá

também com que freqüência, para me recuperar de mim, como

para esquecer-me temporariamente, procurei abrigo em algum lugar

— em alguma adoração, alguma inimizade, leviandade,

cientificidade ou estupidez; e também por que, onde não encontrei

o que precisava, tive que obtê-lo à força de artifício, de falsificá-lo

e criá-lo poeticamente para mim (— que outra coisa fizeram

sempre os poetas? para que serve toda a arte que há no mundo?).

Mas o que sempre necessitei mais urgentemente, para minha cura e

restauração própria, foi a crença de não ser de tal modo solitário, de

não ver assim solitariamente — uma mágica intuição de semelhança

e afinidade de olhar e desejo, um repousar na confiança da amizade,

uma cegueira a dois sem interrogação nem suspeita, uma fruição de

primeiros planos, de superfícies, do que é próximo e está perto, de

tudo o que tem cor, pele e aparência. Talvez me censurem muita

"arte" nesse ponto, muita sutil falsificação de moeda: que eu, por

exemplo, de maneira consciente-caprichosa fechei os olhos à cega

vontade de moral de Schopenhauer, num tempo em que já era

clarividente o bastante acerca da moral; e também que me enganei

quanto ao incurável romantismo de Richard Wagner, como se ele

fosse um início e não um fim; também quanto aos gregos, também

com os alemães e seu futuro — e talvez se fizesse toda uma lista

desses tambéns... Supondo, porém, que tudo isso fosse verdadeiro

e a mim censurado com razão, que sabem vocês disso, que podem

vocês saber disso, da astúcia de autoconservação, da racionalidade

e superior proteção que existe em tal engano de si — e da falsidade

que ainda me é necessária para que continue a me permitir o luxo

de minha veracidade?... Basta, eu ainda vivo; e a vida não é

excogitação da moral: ela quer ilusão, vive da ilusão... porém,

vejam só, já não começo de novo a fazer o que sempre fiz, como

velho imoralista e apanhador de pássaros — falando imoralmente,

amoralmente, "além do bem e do mal"?" [...]

__(NIETZSCHE, 1886_traduzido por Paulo César de Souza)


O que Nietzsche está dizendo?

1 - "Meus livros são uma armadilha pra otário que acredita em tudo." Ele coloca ideias que viram de cabeça pra baixo os valores que todo mundo aceita como certos (moral, religião, etc.). Quem lê fica com o pé atrás e começa a questionar TUDO, até a defender coisas consideradas "ruins".

Cit:
"todos eles contêm, assim afirmaram, laços e redes para pássaros incautos, e quase um incitamento, constante e nem sempre notado, à inversão das valorações habituais e dos hábitos valorizados."

Cit: "Já chamaram meus livros de uma escola da suspeita, mais ainda do desprezo, felizmente também da coragem, até mesmo da temeridade."

2 - "Eu fui o cara que mais desconfiou de TUDO nesse mundo, até de Deus."

Isso é um role solitário e desgraçado que enche o saco. Pra não pirar, ele mesmo se enganava às vezes, se jogando em artes, amizades ou ciência pra ter um alívio e acreditar que não tava sozinho no mundo.

Cit: "De fato, eu mesmo não acredito que alguém, alguma vez, tenha olhado para o mundo com mais profunda suspeita, e não apenas como eventual advogado do Diabo, mas também, falando teologicamente, como inimigo e acusador de Deus."

Cit: "quem adivinha ao menos em parte as conseqüências de toda profunda suspeita, os calafrios e angústias do isolamento [...] compreenderá também com que freqüência, para me recuperar de mim, como para esquecer-me temporariamente, procurei abrigo em algum lugar"

3 - "Sim, eu me iludi de propósito algumas vezes. E daí?"

Ele admite que talvez tenha idealizado errado alguns ídolos (como Schopenhauer e Wagner), mas pergunta: "Vocês não entendem que às vezes a gente PRECISA se enganar um pouco pra aguentar a barra de encarar a verdade nua e crua?". A vida precisa de um pouco de ilusão pra ser suportável.

Cit: "Talvez me censurem muita 'arte' nesse ponto, muita sutil falsificação de moeda: que eu, por exemplo, de maneira consciente-caprichosa fechei os olhos à cega vontade de moral de Schopenhauer"

Cit: "que sabem vocês disso, que podem vocês saber disso, da astúcia de autoconservação, da racionalidade e superior proteção que existe em tal engano de si"

Cit: "a vida não é excogitação da moral: ela quer ilusão, vive da ilusão"


___K4n


Referência>>>

NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.


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