Ranke, outro que colocava Deus em tudo, mas se achava 'historiador imparcial'
Leopold von Ranke: O Método Histórico entre a Ciência e a Arte
Leopold von Ranke é amplamente reconhecido como um dos fundadores da história científica moderna. Sua famosa máxima, que propunha mostrar o passado "como realmente aconteceu" (BENTIVOGLIO, 2010, p. 133-154), é frequentemente mal interpretada como uma defesa de uma neutralidade positivista extrema. No entanto, como demonstra Julio Bentivoglio, a proposta de Ranke era muito mais complexa e profunda. Ele não acreditava que os fatos simplesmente "falavam por si mesmos", mas sim que o historiador devia empregar um método rigoroso de crítica de fontes primárias – como documentos, cartas e diários – para se aproximar da verdade histórica, reconhecendo que essa busca era, em si, uma forma de engajamento com o real.
A base do método rankeano repousava na convicção de que a história é uma disciplina única, uma síntese de ciência e arte. Como ele próprio definiu, a história "distingue-se de todas as outras ciências por ser também uma arte" (BENTIVOGLIO, 2010, p. 133-154). Enquanto ciência, ela exige a coleta, a busca e a investigação meticulosa das fontes. Como arte, ela requer a habilidade de recriar e retratar aquilo que foi encontrado, construindo uma narrativa que dê vida ao passado. Essa dualidade afastava Ranke tanto de uma filosofia da história puramente especulativa quanto de uma mera crónica factual sem interpretação.
Um pilar central do pensamento de Ranke, que reforça sua oposição a visões teleológicas como a de Hegel, era a ideia de que "cada época é imediata a Deus" (BENTIVOGLIO, 2010, p. 133-154). Esta frase significa que cada período histórico possui seu próprio valor intrínseco e singularidade, não devendo ser julgado como um mero degrau ou etapa inferior em direção ao presente. Para Ranke, a história "reconhece algo infinito em cada existência, em cada condição, em cada ser; algo eterno vindo de Deus" (BENTIVOGLIO, 2010, p. 133-154). Sua motivação última era, portanto, religiosa: enxergar a manifestação do divino na experiência humana ao longo do tempo.
Para colocar seu método em prática, Ranke estabeleceu exigências rigorosas para o historiador. Além do "amor à verdade" e de um "estudo documental, penetrante e profundo", ele defendia a imparcialidade (BENTIVOGLIO, 2010, p. 133-154). Esta não era uma neutralidade impossível, mas a capacidade de compreender os lados em conflito em seu próprio contexto, sem julgá-los anacronicamente com os valores do presente. Ele criticava a tendência de que "julgamos o passado muito mais, repetidas vezes, pela situação presente" (BENTIVOGLIO, 2010, p. 133-154). O objetivo era compreender antes de julgar, investigando os motivos reais nos documentos, e não atribuindo paixões genéricas como egoísmo ou sede de poder.
Em conclusão, a contribuição de Ranke vai muito além da famosa frase que o tornou conhecido. Ele foi um teórico sofisticado que definiu a história como uma prática que exige tanto o rigor científico da crítica documental quanto a sensibilidade artística da narrativa. Movido por uma visão de mundo religiosa que via valor divino em cada época, seu método foi concebido como um caminho para compreender a complexidade do passado em seus próprios termos, e não para subjugá-lo a teorias filosóficas ou agendas políticas. Seu legado é a fundação de uma historiografia crítica que busca, acima de tudo, a compreensão fundamentada.
Claro, é inegável que o sujeito Ranke era um 'monstrão' para sua época e muito da história, sobretudo, a teoria da história, vive dele e suas teorias até hoje. Mas, convenhamos, ele não era bem o 'historiador imparcial' que dizia ser. Contudo, afinal, quem é totalmente imparcial? Não só em história, mas em todo o resto? Ouso dizer que apenas a Filosofia e os Filósofos com F maiúsculo o são. Será?
Leopold von Ranke: A Vida do Patriarca da História Científica
A trajetória de Leopold von Ranke (1795-1886) é inextricavelmente ligada à profissionalização da história como disciplina acadêmica. Nascido na Turíngia, em uma família de pastores luteranos, sua formação inicial em filologia e teologia na Universidade de Leipzig, entre 1814 e 1818, forneceu a base metodológica para sua futura obra. Como observa o historiador Georg G. Iggers, foi a filologia clássica, com sua ênfase na crítica textual e na autenticidade das fontes, que forneceu a Ranke as ferramentas para revolucionar o ofício do historiador (IGGERS, 2012). Sua transição para a história ocorreu durante seu tempo como professor em Frankfurt an der Oder, onde, insatisfeito com a historiografia baseada em memórias e relatos de segunda mão, começou a buscar um contato direto com os documentos originais.
O marco definitivo de sua carreira foi a publicação, em 1824, de História dos Povos Latinos e Germânicos de 1494 a 1514. Não foi o conteúdo, mas o apêndice intitulado Sobre a Crítica das Fontes e sua famosa máxima de buscar mostrar o passado "como ele realmente aconteceu" (wie es eigentlich gewesen) que ecoaram através das décadas. Este trabalho, fruto de pesquisas em arquivos da Alemanha e Áustria, valeu-lhe uma nomeação para a Universidade de Berlim em 1825. Em Berlim, Ranke acessou os arquivos prussianos e iniciou seus famosos seminários, que se tornaram o modelo para a formação de historiadores em todo o mundo. Nestes seminários, como detalha Ernst Schulin, os alunos eram treinados na prática da Quellenkritik (crítica das fontes), aprendendo a autenticar, comparar e extrair informações de documentos sob a supervisão direta do mestre (SCHULIN, 1997).
Sua posição social elevou-se dramaticamente ao longo de sua vida, transformando-o de um promissor académico em uma figura central do establishment intelectual prussiano. Em 1841, foi nomeado Historiografo Real pelo rei Frederico Guilherme IV, um cargo que simbolizava a estreita relação entre a nascente historiografia científica e o Estado nacional prussiano. Sua influência estendeu-se até a realeza bávara, para a qual realizou uma série de palestras privadas em 1854. Apesar de sua proximidade com o poder, sua obra, como História da Reforma na Alemanha (1839-1847), não foi uma mera apologia do Estado. Como argumenta James M. Powell, Ranke manteve um ideal de objetividade, buscando compreender as forças históricas em jogo, embora dentro de uma visão profundamente conservadora e religiosa do mundo (POWELL, 1990, p. 23).
A produtividade de Ranke foi monumental até o fim de seus dias. Mesmo após sua aposentadoria em 1871, ele embarcou na ambiciosa História Universal, um projeto que refletia sua crença na interconexão divina dos eventos humanos. Ele faleceu em Berlim em 1886, aos 90 anos, com o manuscrito de seu último trabalho ainda sobre a escrivaninha. Sua morte marcou o fim de uma era, mas seu legado, centrado no método crítico, na centralidade dos arquivos e no seminário como espaço de formação, permanece como um pilar fundamental da prática histórica, cementando seu lugar como um dos mais influentes historiadores de todos os tempos.
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Referências:
BENTIVOGLIO, Julio. In: MALERBA, Jurandir (org.). Lições de História: O caminho da ciência no longo Século XIX. Rio de Janeiro: FGV, 2010.
IGGERS, Georg G. The Theory and Practice of History: Leopold von Ranke. In: _______. (ed.). The Theory and Practice of History: Edited with an Introduction by Georg G. Iggers. New York: Routledge, 2012. p. 1-10.
POWELL, James M. (ed.). Leopold von Ranke and the Shaping of the Historical Discipline. Syracuse, NY: Syracuse University Press, 1990.
SCHULIN, Ernst. Leopold von Ranke. In: _______. Trabalho Acadêmico e Crise Histórica: Estudos sobre a Historiografia Alemã do Século XIX. Lisboa: Edições 70, 1997. p. 55-78.
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