Hegel e a semente do totalitarismo e Quincas Borba



Hegel via a história como um grande quebra-cabeça que vai se montando sozinho, seguindo uma lógica que poucos entendem. Ele acreditava que tudo no mundo - desde grandes impérios até as ideias na sua cabeça - faz parte de um processo inteligente, como se existisse uma mente gigante (que ele chamava de "Espírito") guiando tudo. Nessa visão, até as coisas que parecem ruins - como guerras ou injustiças - teriam um propósito maior no fim das contas.

O pulo do gato de Hegel está na tal "dialética": toda ideia (tese) acaba criando seu oposto (antítese), e do conflito entre elas surge algo novo e melhor (síntese). É como se a história fosse uma discussão sem fim onde cada briga gera uma conclusão mais avançada. Quando ele diz que "a Liberdade é a essência do Espírito", não está falando de fazer o que quer, mas de entender as regras do jogo e aceitar seu papel nele - o que para ele seria a verdadeira liberdade.

Os grandes heróis da história, como César ou Napoleão, seriam como atores num roteiro que não conhecem: acham que estão agindo por motivos pessoais, mas na verdade estão ajudando o "Espírito" a realizar seus planos. E quando seu tempo acaba, são descartados - como Hegel mostra ao dizer que "nenhum homem é herói para seu criado de quarto", lembrando que até os maiores líderes são humanos com defeitos.

O Estado, nessa visão, não é apenas um governo qualquer, mas a forma mais avançada que a liberdade pode ter - por isso ele chama de "Ideia Divina na terra". Parece complicado, mas a ideia é simples: as leis e instituições seriam a maneira que a humanidade encontrou de organizar a liberdade de verdade, não a liberdade de fazer o que quer, mas de viver numa sociedade racional.

No fim, o que Hegel propõe é que tudo está conectado num grande processo onde o passado, presente e futuro fazem parte de um mesmo fluxo. Quando ele diz que "o Espírito é imortal", está falando que essa força motriz da história nunca para, apenas vai se transformando. É uma visão que tenta explicar até as piores tragédias como parte necessária de um plano maior - o que pode ser reconfortante para alguns, mas também assustador, pois sugere que não temos tanto controle assim sobre nosso destino. No fundo, Hegel nos convida a ver a história não como uma série de acidentes, mas como uma história com sentido - mesmo que esse sentido nem sempre seja claro para nós.

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As Contradições do Sistema Hegeliano


A grandiosa filosofia da história de Hegel, que apresenta o devir histórico como um processo racional dirigido pelo Espírito Absoluto, tem sido alvo de contundentes críticas por parte de importantes pensadores. Schopenhauer, o primeiro grande detrator de Hegel, ironizava que seu sistema era "uma colossal farsa filosófica", destacando como a dialética hegeliana justificava qualquer absurdo como parte do "plano racional" (SCHOPENHAUER, 1844). Essa crítica ecoa no texto analisado quando Hegel sugere que até as piores tragédias teriam um propósito maior.

Kierkegaard atacou frontalmente a noção hegeliana de liberdade como mera aceitação do sistema. Para o filósofo dinamarquês, isso representava a negação da verdadeira liberdade individual: "Hegel construiu um palácio de ideias, mas viveu numa cabana existencial" (KIERKEGAARD, 1846). Essa crítica é especialmente pertinente quando o texto mostra Hegel defendendo que a verdadeira liberdade estaria em "entender as regras do jogo e aceitar seu papel".

Marx, embora tenha se apropriado do método dialético, inverteu completamente o sistema hegeliano. Enquanto Hegel via o Estado como "Ideia Divina na terra", Marx denunciava: "Hegel transforma os sujeitos em predicados e os predicados em sujeitos" (MARX, 1843), mostrando como essa visão justificava a dominação política. O texto analisado revela essa contradição ao apresentar o Estado hegeliano como ápice da liberdade, quando na prática poderia servir para legitimar regimes autoritários.

Nietzsche talvez tenha dado o golpe mais mortal na concepção hegeliana ao questionar a própria noção de história como processo racional: "O mundo não é o desenvolvimento lógico do Espírito, mas a vontade de poder em eterno retorno" (NIETZSCHE, 1886). Essa crítica desmonta a ideia central do texto de que a história seria "um grande quebra-cabeça que se monta sozinho".

Popper, no século XX, completou essa crítica ao classificar o hegelianismo como "um dos piores inimigos da sociedade aberta" (POPPER, 1945), mostrando como sua filosofia poderia servir para justificar totalitarismos ao transformar o Estado em entidade divina.

O texto do Patrick Gardiner, analisado aqui, ao apresentar de forma simplificada a visão hegeliana, revela justamente essas contradições: uma filosofia que promete explicar toda a história, mas que acaba por divinizar o status quo; um sistema que fala em liberdade, mas que na prática a nega ao subordinar o indivíduo ao "Espírito Absoluto". Como mostraram seus críticos, o grande perigo do hegelianismo está em sua capacidade de transformar qualquer injustiça histórica em "etapa necessária" do desenvolvimento espiritual - uma racionalização que pode servir tanto para compreender quanto para justificar o injustificável.

Hegelianismo como semente do totalitarismo moderno

A acusação de que Hegel seria "o pai do totalitarismo" é uma controvérsia complexa que divide especialistas há mais de um século. Vamos desmontar essa questão:

1. O que sugere essa ligação:

Sua glorificação do Estado como "Ideia Divina na terra" (p. 82)

A noção de que indivíduos são "instrumentos" do Espírito Absoluto

A justificativa de que até atrocidades teriam "sentido histórico"

2. Os argumentos dos acusadores:

Karl Popper, em A Sociedade Aberta e Seus Inimigos (1945), fez a acusação mais famosa:

A dialética hegeliana seria um "pensamento mágico" que justifica qualquer arbitrariedade

Seu estatismo alimentaria ideologias autoritárias

A ideia de "sentido histórico" anularia a moral individual

3. Mas a defesa rebate:

Estudos mais recentes (como os de Charles Taylor e Robert Pippin) mostram que:

Hegel defendia um Estado constitucional, não arbitrário

Sua liberdade exigia instituições racionais, não obediência cega

O "Espírito" hegeliano se realiza no debate público, não na supressão de vozes

4. A nuance fundamental:

Hegel morreu em 1831 - muito antes dos totalitarismos do século XX. Há uma diferença crucial entre:

- O que Hegel realmente escreveu (um sistema complexo sobre autonomia racional)

- Como seus conceitos foram distorcidos depois (por certos marxistas e fascistas)


Veredito: Chamá-lo de "pai do totalitarismo" é reducionista, mas é inegável que:

- Sua filosofia contém ambiguidades perigosas que autoritários depois exploraram.

- Porém, o verdadeiro Hegel defendia algo mais sofisticado que mera obediência ao Estado.


Como observou Isaiah Berlin: "Hegel não era totalitário, mas criou vocabulário que os totalitários depois usariam mal".

Isto é, Hegel plantou a semente do totalitarismo moderno "sem querer"?' Ou sem querer, querendo', já que tudo, segundo a sua teoria, 'faz parte da vontade do grande espírito absoluto'? 

Seja como for, a lição é que sistemas filosóficos grandiosos sempre correm risco de serem distorcidos, vulgarizados e instrumentalizados. 

A Convergência Absurda Entre Hegel e Quincas Borba: Quando a Filosofia Encontra a Sátira

A comparação entre Georg Wilhelm Friedrich Hegel e Quincas Borba, personagem icônico de Machado de Assis, revela uma ironia profunda sobre como sistemas filosóficos grandiosos podem beirar o ridículo quando levados ao extremo. Hegel, com seu "Espírito Absoluto" que governa a história, e Quincas Borba, com seu "Humanitismo" que reduz a existência a uma disputa por batatas, são figuras que, em essência, compartilham a mesma pretensão: a de explicar o mundo inteiro por meio de uma teoria unificada. Enquanto Hegel elaborou uma filosofia densa e sistemática que influenciou gerações, Quincas Borba encarna a caricatura do pensador que perdeu o contato com a realidade, mas ainda assim insiste em sua grandiosa visão.

A genialidade de Machado de Assis ao criar Quincas Borba está justamente em expor o lado absurdo de certas construções intelectuais. Se Hegel via a história como um processo racional dirigido por uma força cósmica, Quincas Borba reduz tudo a uma competição trivial, onde "ao vencedor, as batatas". Ambos, cada um à sua maneira, tentam dar sentido ao caos da existência, seja pela via da grandiosidade metafísica, seja pela simplificação grotesca. A diferença crucial, porém, é que Quincas Borba é conscientemente patético, enquanto Hegel levou sua própria teoria a sério até o fim.

Essa analogia não apenas diverte, mas também provoca uma reflexão crítica sobre como ideias filosóficas podem se tornar dogmáticas quando desconectadas da realidade cotidiana. Se Hegel é a versão acadêmica e pomposa do pensador que acredita ter desvendado os segredos do universo, Quincas Borba é sua contraparte satírica, lembrando-nos de que, por trás de sistemas complexos, muitas vezes há apenas uma tentativa desesperada de impor ordem onde há apenas contingência. No fim, ambos nos fazem rir — um involuntariamente, o outro por obra de Machado de Assis.


---E. E-Kan 



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Referências:

HEGEL, G. W. F. Textos sobre Filosofia da História. In: GARDINER, Patrick. Teorias da História. Tradução de Vítor Matos e Sá. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, [s.d.]. p. 70-88. (As citações referem-se às páginas exatas deste documento específico)

ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1881.

HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Meneses. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2013. (Original publicado em 1807)

KIERKEGAARD, S. Migalhas Filosóficas. Tradução de Ernani Reichmann. Curitiba: Editora UFPR, 2007. (Original publicado em 1844)

MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Tradução de Rubens Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo: Boitempo, 2005. (Original publicado em 1843)

NIETZSCHE, F. Além do Bem e do Mal. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. (Original publicado em 1886)

POPPER, K. A Sociedade Aberta e Seus Inimigos. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987. v. 2. (Original publicado em 1945)

SCHOPENHAUER, A. Parerga e Paralipomena. Tradução de Wolfgang Leo Maar. São Paulo: Editora UNESP, 2015. v. 1. (Original publicado em 1851)

HEGEL, G. W. F. Filosofia do Direito. Tradução de Orlando Vitorino. Lisboa: Guimarães Editores, 1985. (Original publicado em 1821)

POPPER, Karl. A Sociedade Aberta e Seus Inimigos. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987. v. 2. (Original publicado em 1945)

TAYLOR, Charles. Hegel e a Sociedade Moderna. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Loyola, 2005. (Original publicado em 1979)

PIPPIN, Robert. Hegel's Practical Philosophy: Rational Agency as Ethical Life. Cambridge: Cambridge University Press, 2008.

BERLIN, Isaiah. Contra a Corrente: Ensaios sobre História das Ideias. Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.


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