Contos e Microcontos Insólitos de E. E-Kan

 


Barosky, o solitário  


Barosky, velho e solitário, saía todos os dias e caminhava sem rumo, para sentir um pouco da vida que ainda lhe restara. No fim da tarde, ele sempre acabava no supermercado. As pessoas indiferentes e a mulher do caixa 7 eram a sua única companhia. Um sorriso, um adeus, era tudo o que ele esperava. Depois, ele se sentava num dos bancos do lado de fora e ficava lá, dramaticamente imperceptível, observando as pessoas até a luz do dia se esvair na escuridão da noite solitária, só aliviada pelas luzes dos postes que se espalhavam por toda a parte. 


Autoria: E. E-Kan
Contos e Microcontos Insólitos
Escrito em 09/06/2023 - 21:47 - Brasil   
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Imagem do Microconto Barosky, o solitário, de Zoran Dordevic (Serbia)

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Gigi

Um certo dia, numa manhã de um inverno qualquer, Gigi, sem esperança e sem teto, magra, mal parando em pé, com fome, com sede e uma perna machucada após ser atropelada há quase uma semana antes, segundo a moça de uma barraca de frutas, perambulava próximo de um posto de combustíveis. Entre a total ausência de sentido da vida, dor, solidão, sofrimento, descaso, abandono, desamor, entre a vida e a morte, dia após dia, noite após noite, ela poderia se perguntar e com razão: "Deus, porque me abandonaram? Quando tudo isso terá fim?".
A esperança também parecia estar definitivamente morta para ela, mas, de repente, como todas as coisas inexplicáveis da vida, Gigi e sua esperança quase perdida, encontraram um refúgio no coração louco mas compassivo da alma inquieta de Jean Jackson Russão, ou apenas "J.R", como era chamado entre os motoqueiros. JR vendo que Gigi, caminhando desalentada para o meio da via, seria atropelada por um caminhão, parou a moto rapidamente e num ímpeto a livrou do destino cruel.  A alegria de Gigi transbordava em cada pulo e lambida, e até nas "brigas" com outros cães também adotados por J.R e sua esposa Carmelita, envolvendo o lar simples com uma energia de pura gratidão reconfortante. Com olhos brilhantes, Gigi perscrutava o mundo, repleta de vida e promessas.
Os anos se passaram e a mão do tempo, com seus caprichos e ironias, tocou o Ser de Gigi. Uma sombra sorrateira, chamada diabetes, lançou-se sobre seu corpo, corroendo sua vitalidade. A doença teceu uma teia silenciosa, obscurecendo a visão que antes era tão límpida e vibrante.
E numa manhã de um dia de primavera, os olhos de Gigi, antes de cores vivas e brilhantes estavam brancos. Agora cega, Gigi vagava num labirinto de escuridão, confiando em seu faro e memória. As brincadeiras, outrora repletas de distrações alegres, tornaram-se um misto de trombadas em meio a passos cautelosos, guiados pelos ecos de seu companheiro Urso, de JR e Carmelita. A cada tatear inseguro, seu coração leal buscava a presença acolhedora de seus amados, sua família, cujas vozes amorosas ecoavam como faróis iluminados.
JR, já profundamente entristecido e deprimido com outras "surpresas" da vida, ao ver a pobre Gigi naquela situação, chorou copiosamente e lembrou de uma frase que lera em algum lugar um dia desses, a qual dizia: "o ruim só é ruim enquanto o pior não acontece". Carmelita tentava amenizar sua tristeza, com seu carinhoso e sábio racionalismo, e dizia-lhe: "é triste, é lamentável, é horrível, mas não podemos perder a esperança na vida por causa disso e observe a Gigi, ela segue sua vida, se adaptando, procurando na escuridão da sua cegueira, com outros sentidos, o caminho para o nosso amor e achando um meio de seguir em frente".
E de fato, a cegueira não abalou a alma corajosa de Gigi. Ela se adaptou ao mundo escuro, enxergando através da pureza do afeto. Seu focinho ainda se erguia com dignidade, aspirando os cheiros familiares, lendo nas brisas os sinais do amor, essa Lei Cósmica Transformadora da Vida nesse mundo e em todos os mundos possíveis. Seus ouvidos atentos captavam cada batimento, cada suspiro de cuidado.
E, assim, Gigi, antes abandonada, sem esperança, entre a vida e a morte, depois adotada e que outrora dançava sob o sol radiante, continuou a bailar na escuridão, embalada pela música invisível da vida em toda a sua incomensurabilidade. Seu corpo envelhecido, marcado pelas cicatrizes do tempo, guardava uma sabedoria singela, seus passos desenhavam uma coreografia sutil, conduzida pela sinfonia dos laços inquebráveis que a uniam àqueles que lhe estenderam a mão.
No final de sua vida, numa tarde ensolarada, Gigi partiu em silêncio. Para viver novas aventuras em outros corpos? Quem saberá? Mas a sua história de amor e superação permaneceu entrelaçada nas memórias de JR e Carmelita que a acolheram. Seu legado era o brilho dos seus olhos outrora radiantes e a lembrança de sua alegria transbordante. 
        E, mesmo na eternidade, a estrela de Gigi brilhava no firmamento, recordando a todos que a vida é uma dança incessante de luz e sombras, e que o amor é a bússola que nos guia pelos caminhos mais obscuros.
        Após a partida de Gigi, JR, pensativo, anotou num de seus cadernos: "A vida, que é Luz, nasce da Escuridão e corre pelo Abismo em direção ao Vazio. Haverá alguma coisa para além do Vazio? Quem de fato saberá? Adeus Gigi. Se você, de alguma forma, ainda existir, desejo com todas as forças e com todo o amor que ainda reside no fundo do meu coração, que você esteja bem, assim como todos que já partiram para longe de nós, mas que jamais partirão de nós, passe o tempo que passar. Nunca deixaremos de amar aqueles que amamos, principalmente, aqueles que já partiram para longe de nós mas não de nós. Passe o tempo que passar, eles sempre estarão lá, naquele lugar especial no fundo de nossa mente, coração e alma. Mesmo após fecharmos nossos olhos pela última vez nesse mundo e então nos tornarmos Viajantes da Luz na Escuridão, mesmo lá, onde quer que seja esse lugar, eles estarão conosco".

Autoria: E. E-Kan
Contos e Microcontos Insólitos
Escrito em 10/06/2023 - 20:15 - Brasil  
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Imagem do Microconto Gigi, de Exordia, Pinterest

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De Zac Balonoré para ele mesmo


Hoje acordei pensando na quantidade de pessoas de verdade e de mentira, de pessoas vivas e mortas em vida que conheci e sobre o quanto eu fui de verdade, de mentira, vivo e morto em vida para elas. Por um momento, num ímpeto misto de contentamento, tristeza e fúria, pensei em levantar correndo e ir para as redes sociais bloquear todos os falsos, todos os que fingem ser meus amigos, todos os que fingem me amar, todos os que fingem querer meu bem, todos os que fingem estar  interessados no que escrevo, todos os que fingem. Mas, aí pensei se não era melhor eu me auto-exterminar das redes umbrais sociais e desaparecer para sempre?! Com efeito, ponderei, o meu auto-extermínio seria inútil, principalmente, para mim, que vim porque vim a este mundo cão de tragicomédias sem fim. Sem falar, que a grande maioria dos animais falantes que se acham pensantes, já em avançado estágio de putrefação mental, moral e espiritual, nem ligariam e seguiriam achando tudo muito normal, como convém nos dias hodiernos, onde o absurdo, o bizarro, o hediondo, o macabro, inclusive o profundamente triste, chocam por um brevíssimo momento mas logo se tornam, pela mágica da idiotização em massa através da algoritmia do  caos, aliadas à pseudo-correria do dia a dia, tudo muito normal!!! Obviamente, alguns, principalmente, os que se acham meus antípodas, iriam adorar saber do meu auto-extermínio virtual, talvez até bebessem algo para comemorar, achando que enganam a si mesmos, afinal, todos sabemos que quem diz que odeia, ama profundamente, no mais recôndito segredo. O fato é que ninguém iria ficar triste, o que parece bom! Contudo, após pensar e pensar, ruminantemente, exatamente 'no momento que eu resolvi partir, eu decidi ficar' e não dar 'o gostinho' para nenhum 'fingidor'. Resolvi não me auto-exterminar e nem exterminar a ninguém, decidi deixar todos os fingidores como estão, em seus devidos lugares no Não-ser, achando que podem se enganar, enganar a mim e a todos entre si.  'Quero estar vivo para ver o Sol nascer', se possível, até o dia que as redes colapsarem em si mesmas e todos os fingidores caírem no Vazio Abissal do 'purgatório' da realidade nua e crua.

Autoria: E. E-Kan
Contos e Microcontos Insólitos
Escrito em 12/06/2023 - 20:04 - Brasil  
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Imagem do Microconto Gigi, de Exordia, Pinterest


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