Hermann Hesse: "um teatro mágico ambulante"

Sobre algumas questões a respeito de O Lobo da Estepe

Antes de tudo, para entender o mínimo de ‘O Lobo da Estepe’, penso que necessário se faz a leitura sobre a Biografia de Hermann Hesse e depois, pelo menos a leitura de Peter Carmezind / Camenzind, que é, na prática, o protótipo do personagem ‘O Lobo da Estepe’, escrito por Hesse em 1903 e publicado em 1904.

Contudo, penso que 'O Lobo da Estepe', (publicado 23 anos depois) é a caricatura de Hermann Hesse sob um viés essencialmente Nietzscheano e Dostoiéviskano, isto é: profundamente amargurado mas buscando algo que amenize esse amargor e por que não uma boa "viagem?", seja ela de fato uma "viagem", do tipo psicodélica ou uma viagem meramente "literal?".

Hesse, que tentou suicídio aos 15 anos e que morreu dormindo, vítima de um derrame hemorrágico cerebral aos 85 (nenhuma morte pode ser melhor que essa, morrer dormindo), projeta na obra 'O Lobo da Estepe', aquilo tudo que ele queria ser e viver na realidade mas não teve a necessária coragem para tal.

Nietzsche, já desconfiando de que havia algo de muito errado com consigo mesmo (descobriu depois que estava com a dita cuja da sífilis e outras 'cosas' em face da vez que foi ao puteiro pela primeira vez e de cara já se lascou), antevendo que a vida estava indo para o buraco, para o fim inevitável, meteu o pé para Turim na Itália e "pirou o cabeção com ópio, haxixe, absinto" e outras coisas. (Isso explica porque Nietzsche chorou por causa do cavalo açoitado).

Depois, delirante e doidaço, imaginando o desespero de viver, fatalmente doente, a vida vazia de sentido (porque é isso que a vida humana na Terra é [e é por isso que ele fala muito em criar um sentido próprio, transvalorar valores]), escreveu diversos textos-cartas a amigos, sob epítetos doidos como "O anticristo", "O Crucificado", "Dionísio" etc. Esse foi o início da fuga final de Nietzsche.

Já Hermann Hesse, escreveu um livro ficcional fodástico e majestoso sobre a realidade das eventuais experiências sexuais psicodélicas da época (1920-1930), sobretudo, sobre o dilema sem solução do dualismo humano, "Ser e Não Ser". Mas, quem garante de fato que Hesse não tenha "curtido" alguma coisa para amenizar a tensão em sua época?

Evidentemente, o livro em si vai muito além da ficção sobre a experiência psicodélica e sexual de uma época (1920-1930) (lembrando que o livro foi publicado em 1927). A obra que transcende as palavras escritas no livro vai ao abismo da mente e da alma humana sempre entre a destruição e a redenção.

Diria, portanto, que 'O Lobo da Estepe', além das interpretações clichês, é um "Grande Teatro Mágico", "um algo" que pretende ser um ponto de encontro de todos os dilemas, das dores e dos prazeres da aventura na História do animal falante que se acha pensante sobre a Terra;

Claro, o prazer visto aqui, como uma forma de suportar a realidade nua e crua, a vida muitas vezes vazia de sentido e pesada no mundo cão em que somos "cuspidos" e até mesmo uma forma de recomeçar a tentar ressignificar a vida por aquilo que ainda é Belo e Bom.

E, falando de "teatro mágico", o que é que pode ser mais Belo e Bom que o prazer, sobretudo, o prazer sexual combinado com drogas, bebidas e "rock 'n' Roll? Digo, literatura, filosofia, rock 'n' roll, blues, jazz, etc...

Brincadeiras à parte (hoje em dia sou muito mais estoico do que hedonista, diria até que sou um estoico hedonista fora de época), se observarmos bem, todos os grandes pensadores, (ao menos os que podemos estudar numa vida no abismo de misérias, injustiças e abusos criminosos de uma sociedade fake que nem isso nos deixa fazer direito por causa do maldito dinheiro), sempre estão nessa de "entre a cruz e a espada", sempre "putos da cara" com o mundo, muitas vezes desanimados com o mundo, desesperançados, e em algumas vezes, profundamente desiludidos com tudo e achando que não há a menor chance de salvação para nada.

Curiosamente, a maioria dos pensadores desiludidos da vida, pensa em tudo isso mas escreve feito 'beatas de Leibniz', isto é, como se "toda a realidade brutal, as injustiças, as misérias e os abusos criminosos originários na mega concentração de riquezas nas mãos de pouquíssimos" fosse "algo normal" e que este, apesar de tudo, seria "o melhor dos mundos possíveis".

Hesse assim como Nietzsche e Dostoiévski chutam essa babaquice otimista Leibniziana para longe e, pelo menos, eles enfrentam a realidade ("de que esse não é o melhor dos mundos possíveis" e talvez nunca exista um), com doideiras e sem doideiras em muitos momentos, mas, sobretudo, pensam, filosofam e escrevem sobre a vida e as coisas da vida transformando essas coisas vividas, experimentadas, em teoria, ficção e literatura mas com o sangue, o suor e a lágrimas de suas vidas.

Ou seja, escrevem, no caso de Hesse e Dostoiévski, ficções literárias (e Nietzsche, “ficções filosóficas”) mas baseadas em fatos reais, vivências, em experiências de vida. E não como as muitas beatas de Leibniz, que escrevem ficções baseadas em ficções, idealismos, romantismos, firulas intelectuais e crentelhices.

E por serem fidedignas em relação a realidade, obras como as de Hesse transpassam os tempos e impulsionam e inspiram outras obras e movimentos, como é o caso dos movimentos de contra-cultura, hippies e pré-woodstock nos EUA, graças a ampla divulgação feita dos livros e do pensamento do Hesse por figuras como Colin Wilson (The Outsider) e Timothy Leary (o cara do LSD, amigo pessoal de John Lennon). Tudo isso, mais a partir O Jogo das Contas de Vidro.

Então, o livro "O Lobo da Estepe", máxima data vênia às opiniões em contrário, para mim, é um "grande teatro mágico", um desses lugares que também é um "não-lugar", onde podemos degustar de uma visão de mundo e de uma visão da vida através da ficção literária de altíssima qualidade, que transpassa os tempos e refletir sobre essa nossa inquietude humana na tentativa da descoberta de si, sobretudo, na utópica e eterna busca por auto-compreensão, auto-crítica, auto-afirmação e auto-aceitação e todas as coisas que achamos que nos farão bem de alguma maneira e que nos ajudarão a suportar a vida como ela é, até o nosso último sopro de vida, em nossa ínfima e brevíssima passagem por entre a humanidade decadente.

O tal do Harry Haller

Como diz o Ivo Barroso no prefácio, Hermínia, Maria e Pablo são desdobramentos da personalidade de Harry Haller, e, portanto, podemos  até dizer que o próprio Harry Haller (réri-rálah) é quem se auto-critica.

Mas uma crítica a essa coisa de auto-imagem do Lobo da Estepe, notadamente muito engraçada, é a do Professor quando fala do artigo crítico ao Kaiser (ele, o professor, não sabe que é o próprio "réri-rálah o autor",  "o traidor" que "fala mal" do Kaiser).

"Que espécie de indivíduo devia ser?!", diz o Professor pro Harry Haller que se faz de sonso e tenta mudar de assunto.

Mais curioso ainda é que o Harry Haller tenta "salvar" a noite ainda que na falsidade, tentando manter um clima amistoso mas a cada minuto e palavra vê que a coisa foi pro vinagre.

Maquiavel já tinha anotado de maneira exímia que (A maioria (eu digo "99% das pessoas) agem na falsidade, e, portanto, a maioria (eu digo 99% das relações humanas) são na base da falsidade e do interesse (e na maioria das vezes, no interesse escuso, com segundas e terceiras intenções), e que quase todos tratam os outros "cordialmente", "bem" por algum interesse, disfarçando e ao mesmo tempo desvelando que no fundo, na real, quase ninguém está interessado em nada que não lhe dê lucro e prazer.  Apenas uma minoria da minoria das pessoas faz “algumas coisas” desinteressadamente, com algum tipo de sentimento bondoso.

Hasse apenas tratou do assunto da falsidade humana, do jogo de interesses e da hipocrisia humana de uma maneira magistralmente diferente. Hesse, diria, fez o que Maquiavel, Hobbes e outros não fizeram (porque tinham outros planos), literatura de ficção sobre a vida nua e crua.

O que tudo isso, essas posições do personagem, de auto-crítica, mostram?

O Lobo da Estepe, em cada um de seus personagens projetados, é a caricatura fidedigna do Hermann Hesse.

Isto é, um cara em conflito com a vida em sociedade, 'querendo ser outra coisa para chamar de si mesmo', (coisa que todos nós também o fazemos de certa forma, pelo menos nós que supostamente temos um pouco mais informação e que nos achamos mais ou menos despertos e ligados sobre a realidade nua e crua do mundo cão) e, como no caso do Hesse, como uma perene afronta a moral religiosa incidente (protestante, no caso dele), mas que parece ao leitor desavisado ser, o personagem ‘O Lobo da Estepe’ um grande "hipócrita", quando na real, numa leitura mais aprofundada, lenta, como quando bebemos uma boa cerveja ou um amargo, (que é como devem ser as boas leituras (sem pressa), vemos que (Harry Haller) não o é (hipócrita) porque ele se auto-crítica se projetando nos outros personagens além do "réri-rálah", como o Pablo, seu "crítico construtivo mordaz" e Hermínia, sua versão feminina hedenonista, auto-crítica mas que também mostra o lado "meio narcisista" do "réri-rálah".

Em suma, Harry Haller, auto-projeção psicológica (talvez até psicodélica de Hermann Hesse) se auto-declara (escrevo com hífen mesmo, não sou obrigado a concordar com nenhum acordo ortográfico) um outsider, um cara na dele, um cara foda, um cara que não se mistura mas ao mesmo tempo, de certa forma, 'levemente hipócrita', 'contraditoriamente,' tenta se "enturmar", ainda que restritamente na pensão, destacando o dualismo do tipo "não sei se vou ou se fico", "não caga e não sai da moita".

Mas, como se observa atentamente, lendo sem pressa, degustando a obra como quando se bebe uma boa cerveja, ele (O Lobo da Estepe) mesmo está dizendo coisa do tipo, em outras palavras: "eu sou foda e sou hipócrita e estou falando isso na cara de vocês que se acham acima de qualquer hipocrisia". Vocês que são burros é que não compreendem meu cinismo, sarcasmos e ironia. É "O LOBO LUNATICAMENTE SE ARREGANHANDO E SORRINDO POR DENTRO".

De fato, pouquíssimos conseguem ver (perceber nos detalhes de cada coisa, fala e jeito de andar) e entender um outsider, um sujeito maluco como Harry Haller, um Lobo solitário que vê quase tudo e todos com desdém e, em seu interior, goza na cara de todos, arreganha os dentes e sorri lunaticamente e se diverte com isso no velho e bom dito: "rir para não chorar".

E se for observar bem atentamente, andando à beira do abismo do suicídio, O Lobo da Estepe, quase um Charles Bukowski 'Hesseiano', vive "um dia como se fosse mil anos de cada vez", rindo (por dentro) para não chorar. O caminho dele, penso, é quase o mesmo caminho de todos que buscam algo a mais da vida, é aquele caminho turbulento que chega na encruzilhada e nos põe a pergunta: seguir em frente ou parar por ali mesmo? Muitos de nós, como loucos reafirmadores da vida, apesar de todos os pesares, mesmo com a vida humana vazia de sentido e, na maioria das vezes, insuportável, mesmo assim, como autênticos Viajantes da Luz na Escuridão, escolhemos seguir em frente, só para ver no que vai dar.

Emerson Rodrigues

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(Esse texto foi parte da realização de um trabalho do Curso de Letras da UEPG, na Disciplina do Profº Drº Marco Aurélio de Souza, Disciplina de Fundamentos de Leitura e Teoria Literária, mas relido, refeito, aprimorado e corrigido alguns erros de digitação).

(PS> como, na data dessa post, ainda se trata de um trabalho acadêmico em fase de entrega, toda e qualquer cópia está proibida. Após 06/10/2023, liberado). 

Leiam o livro tigrada!

E a dica que dou é leiam sem pressa, lentamente, apreciando, degustando como uma boa bebida, porque o livro é tão fodastico de bom que você nem vai perceber que o leu tudo, quando acabar). 

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Imagem: Portrait-Aufnahmen von Hermann Hesse