O Queijo e os vermes, de Carlo Ginsburg: uma análise do contexto antropológicvo da micro-história na idade média



Diz um trecho do livro:

"Todos somos filhos de Deus, da mesma natureza que a do que foi crucificado". Todos: cristãos, heréticos, turcos, judeus - "tem a mesma consideração por todos, e de algum modo todos se salvarão".

Neste ponto, o personagem solta uma 'heresia' imperdoável para os inquisidores.

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O 'tar' do livro "O Queijo e os Vermes", de Carlo Ginzburg (85 anos, vivo ainda em 2024) é uma 'viagem' de volta ao século XVI (1501 d.C. a 1600 d.C.) e início do século XVII (1601 d.C. a 1700 d.C.), mais precisamente entre 1580 a 1601, que é quando se passa a história do injustiçado Moleiro Domenico Scandella (Menocchio), trucidado por suas ideias, opiniões e pensamentos numa época em que 'os que se achavam donos da verdade e sábios dos mistérios do universo' não admitiam que alguém além deles lesse, se instruísse e pensasse diferente. Uma época de merda, de fato, mas muito parecida com esse 'tempo vagabundo que escolheram pra gente viver', como dizia Cazuza. 

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Resumão do 'O Queijo e os Vermes'

Imagine um moleiro chamado Menocchio, lá na Itália do século XVI, que resolve que não basta moer trigo, ele quer moer também as ideias da época. 

Ele lê uns montes de livros e, ao invés de guardar essas ideias malucas pra si mesmo, decide contar pra todo mundo que o mundo surgiu como queijo que cria vermes. 

Adivinha só? A Igreja Católica não gostou nem um pouco dessa receita de queijo cósmico. (VER TEORIA DA GERAÇÃO ESPONTÂNEA). 

Menocchio, com sua sabedoria de boteco, acha que pode discutir com padres e bispos, e começa a espalhar suas teorias mais rápido que fofoca em cidade pequena. A Inquisição, que era tipo a polícia do pensamento da época, logo pega o cara e o arrasta para os tribunais. Eles perguntam de onde ele tirou essas ideias, e ele, na maior cara de pau, responde que leu nos livros. O problema é que naquela época, se você não era padre ou nobre, ler já era esquisito, quanto mais inventar teorias.

Apesar dos avisos e das ameaças, Menocchio não cala a boca e continua firme nas suas crenças. Resultado? Ele vai preso e interrogado várias vezes, porque a Inquisição não tinha muita paciência com gente que queria pensar por conta própria.

No fim, apesar de tudo, Menocchio vira uma espécie de herói irônico da história: um simples moleiro que não se conformava em só moer trigo e que, com suas ideias de queijo e vermes, mostrou que até as pessoas mais comuns podem ter pensamentos grandes – e pagar caro por isso.

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Detalhes

No fim, Menocchio, (QUE DIGA-SE DE PASSAGEM, vive na mesma época de Giordano Bruno e que também acaba executado na fogueira da Inquisição aos 52 anos, em 17 de fevereiro de 1600), TAMBÉM não tem um final feliz. 

Basicamente, Bruno foi um dos primeiros a pensar em um Universo Infinito (criado por Deus) com vida em 'TODA A PARTE'. Para Bruno, tudo o que existe 'É VIVO E, DE CERTA MANEIRA, DOTADO DE UMA ALMA, E ATÉ MESMO DE UMA CONSCIÊNCIA'.  


Cit:

"A Terra e os astros (...), como eles dispensam vida e alimento às coisas, restituindo toda matéria que emprestam, são eles próprios dotados de vida, em uma medida bem maior ainda; e sendo vivos, é de maneira voluntária, ordenada e natural, segundo um princípio intrínseco, que eles se movem em direção às coisas e aos espaços que lhes convêm" (Livro: A ceia de cinzas, de Giordano Bruno)

"Todas as formas de coisas naturais têm almas? Todas as coisas são animadas? pergunta Dicson.[50] Theophilo, porta-voz de Bruno, responde: Sim, uma coisa, por minúscula que seja, encerra em si uma parte de substância espiritual, a qual, se encontra o sujeito [suporte] adequado, torna-se planta, animal (...); porque o espírito se encontra em todas as coisas, e não há mínimo corpúsculo que não o contenha em certa medida e que não seja por ele animado." (Causa, Princípio e Unidade, 1584).

"E o que se pode dizer de cada parcela do grande Todo, átomo, mônada, pode se dizer do universo como totalidade. O mundo abriga em seu coração a Alma do mundo" (idem).

"O mundo é infinito porque Deus é infinito. Como acreditar que Deus, ser infinito, possa ter se limitado a si mesmo criando um mundo fechado e limitado?" (idem)

"Não é fora de nós que devemos procurar a divindade, pois que ela está do nosso lado, ou melhor, em nosso foro interior, mais intimamente em nós do que estamos em nós mesmos." (A ceia de cinzas - Link)

VOLTANDO AO ASSUNTO PRINCIPAL...

Sobre Menocchio (QUE BASICAMENTE TEORIZAVA QUE NÃO EXISTIA UM DEUS CRIADOR DE TUDO E QUE TUDO SURGIU 'DO NADA'), após várias sessões de interrogatório e alguns anos de prisão, ele foi condenado pela Inquisição. 

Cit trecho do livro 'O Queijo e os Vermes' sobre a visão de Menocchio sobre Deus, Jesus etc:



Transcrevo: [...] "Mas o que é que realmente Menocchio dizia?


Só para termos uma idéia, não só blasfemava "desmesurada- mente", como sustentava que blasfemar não é pecado (segundo uma testemunha, teria dito que blasfemar contra os santos não é pecado, mas contra Deus é), acrescentando com sarcasmo: "Cada um faz o seu dever; tem quem ara, quem cava e eu faço o meu, blasfemar". Em seguida fazia estranhas afirmações que os conterrâneos relatavam de maneira fragmentada, desconexa, ao vigário- geral. Por exemplo: "O ar é Deus [...] a terra, nossa mãe”; “Quem é que vocês pensam que seja Deus? Deus não é nada além de um pequeno sopro e tudo mais que o homem imagina"; "Tudo o que se vê é Deus e nós somos deuses"; "O céu, a terra, o mar, o ar, o abismo e o inferno, tudo é Deus"; "O que é que vocês pensam, que Jesus Cristo nasceu da Virgem Maria? Não é possível que ela tenha dado à luz e tenha continuado virgem. Pode muito bem ser que ele tenha sido um homem qualquer de bem, ou filho de algum homem de bem". E se dizia ainda que possuía livros proibi- dos, em particular a Bíblia em vulgar: "Está sempre discutindo com um ou com outro, possui a Bíblia em vulgar, e imagina que a base de seus argumentos esteja ali, e continua obstinadamente insistindo neles".

Os testemunhos se acumulavam; Menocchio pressentia que alguma coisa estava sendo preparada contra ele. Foi então falar" [...] p.p 18-128 (pdf)


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Inicialmente, Menocchio foi sentenciado à prisão perpétua em 1599. No entanto, ele continuou a defender suas ideias heréticas e a expressar suas opiniões durante seu tempo na prisão.

Em 1600, devido à sua persistência em divulgar suas crenças, Menocchio foi novamente julgado e, desta vez, sentenciado à morte. Ele foi executado em 1601, sendo queimado na fogueira como herege. 

A sua história mostra o quão perigosas podiam ser as ideias não conformistas naquela época e como a Igreja estava disposta a ir longe para manter a ortodoxia e o controle sobre as crenças das pessoas.

Diz o trecho final do livro 'O Queijo e os Vermes':


Transcrevo: [...] "...no caso daquele camponês da diocese de Concórdia, indiciado por ter negado a virgindade da beatíssima Virgem Maria, a divindade de Cristo, Nosso Senhor, e a providência de Deus, como já lhe escrevi por ordem expressa de Sua Santidade. A jurisdição do Santo Ofício em casos de tamanha importância não pode de modo algum ser posta em dúvida. Assim, execute implacavelmente tudo o que for necessário de acordo com os termos da lei".


Resistir a pressões tão fortes era impossível e depois de pouco tempo Menocchio foi executado. Temos certeza disso pelo depoimento de um tal Donato Serotino, que em 16 de julho de 1601 disse ao comissário do inquisidor do Friuli ter estado em Pordenone pouco depois de haver "sido justiçado pelo Santo Ofício [...] o Scandella", e ter se encontrado com uma taverneira que lhe contara que "numa certa vila [...] um certo homem chamado Marcato, ou Marco, dizia que, morto o corpo, a alma também morria".

Sabemos muita coisa sobre Menocchio. De Marcato ou Mar- co e de tantos outros como ele, que viveram e morreram sem deixar rastros nada sabemos." [...] p.p 97-128 (PDF)

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E. E-KAN

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REFERÊNCIAS:

GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: O Cotidiano e as Ideias de um Moleiro Perseguido pela Inquisição. Tradução de Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Companhia das Letras, 2006

BRUNO, Giordano. A ceia de Cinzas, Caxias do Sul: Educs, 2012. (PDF)

Alexander Dicson, um inglês, aluno de mnemônica e amigo de Bruno. Ver Giordano Bruno: His Life and Thought. Chapter Two. "Bruno in England (1583-85)

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