O Efeito Borboleta Historiográfico: mexer no passado sob pretextos 'salvacionistas da história' pode dar ruim como nos filmes de viagem no tempo
Revisionismo, viagem no tempo e a sabotagem do passado.
Toda vez que escuto esse mantra acadêmico moderno — “reescrever o passado para mudar o presente” — me sinto dentro de um daqueles filmes de viagem no tempo mal roteirizados, onde alguém volta pro século XV, mexe numa vírgula, e quando volta, o mundo tá governado por polvos anarquistas e o pão francês custa 300 reais. O passado, mano, é tipo linha do tempo de ficção científica: você mexe num ponto e bagunça todo o resto. E esse é justamente o risco de certas tendências revisionistas travestidas de virtude acadêmica.
Não tô dizendo que a história deve ser neutra (essa palavra, aliás, cheira a mofo positivista). Mas tem uma linha tênue entre interpretar o passado e usar o passado como palanque ideológico. Rodrigo Prates de Andrade acerta em cheio ao mostrar que aplicar categorias modernas, tipo “progresso”, “racionalidade”, “crítica”, ao passado medieval é uma aberração metodológica:
“Conceitos como economia e religião, concebidos na modernidade, no intuito de explicá-la, são incapazes de apreender a sociedade medieval. Empregá-los aos estudos dessas sociedades incorreriam em contradições que viciariam a abordagem historiográfica” (PRATES, 2020, p. 42).
Em outras palavras, querer que um cronista do século XII seja um historiador “objetivo” é como exigir de um trovador que cite Foucault em latim rimado. E ainda por cima com fonte primária em PowerPoint.
A bronca maior vem quando a galera pega essa ideia de “reescrever o passado” e enche de valores contemporâneos, tipo justiça social, equidade, empoderamento, etc., e aplica direto nos textos medievais. Aí, o passado vira apenas um espelho do presente com filtro militante. É como enfiar um iPhone na mão de Carlos Magno e fingir que ele tá postando stories sobre a Batalha de Roncesvales.
É aí que entra a crítica pesada do Prates, baseada em Seth. Ele aponta que a história moderna, com sua lógica racional e ocidental, não consegue lidar com passados que não cabem nela. E diz:
“A história continua ‘encontrando o presente no seu objeto’, mas não encontra ‘o passado na sua prática’, pois o passado dos países não-ocidentais não é o passado da história” (PRATES, 2020, p. 48-49, citando SETH).
Porrada seca e reta. E isso vale não só pro Oriente, mas também pro Medievo europeu, que vivia sob lógica simbólica, milagrosa, ritualística e nada linear.
Por outro lado, Rezakhani et al. entram com o pé na porta e falam: “Essa porra tá colonizada. A historiografia medieval é branca, elitista e europeia demais.” Eles querem decolonizar o passado — o que, convenhamos, tem fundamento. Eles perguntam:
“Seria possível ‘(des)atualizar’ a historiografia medieval para, a seguir, configurá-la em virtude de um futuro que seja ‘próprio’ às angústias do Sul Global?” (REZAKHANI et al., 2020, p. 30).
Só que aí tá o dilema: ao tentar atualizar o passado pra responder às angústias contemporâneas, você corre o risco de transformar o medievo numa caricatura moderna. E nisso, em vez de ouvir o passado, você cala ele com suas pautas atuais. É o velho paradoxo: você “dá voz” ao outro só pra ele repetir aquilo que você quer ouvir.
E cá entre nós: isso é só mais uma forma de dominação epistemológica, com hashtag e militância, mas ainda dominação.
Por isso, a melhor saída talvez seja a do Rodrigo Prates: reconhecer o abismo entre o presente e o passado, sem tentar saltar ele com as muletas do desejo. Ele propõe uma abordagem antropológica, que respeite as diferenças radicais de pensamento, de tempo, de mundo:
“A produção historiográfica medieval deve ser concebida em seus próprios termos, sem imputar qualquer parâmetro alheio a ela, tal qual todo modo de produção e representação do passado deve ser compreendido” (PRATES, 2020, p. 50).
No fim das contas, o passado não tá aí pra ser reescrito como se fosse um roteiro em aberto. Ele tá aí pra ser escutado, estudado, confrontado — mas sem que a nossa ânsia por justiça simbólica crie uma nova distorção.
Quer mudar o presente? Vai à luta. Mas não sacrifique o passado como se fosse figurante do teu enredo. Como em todo bom filme de viagem no tempo, mexeu demais, dá merda.
___E. E-Kan
___________
Referências
PRATES DE ANDRADE, Rodrigo. É possível uma história da historiografia medieval? História da Historiografia, Ouro Preto, v. 13, n. 33, p. 39-58, maio-ago. 2020. DOI: https://doi.org/10.15848/hh.v3i33.1542.
REZAKHANI, Khodadad et al. Decolonizar a historiografia medieval: Introdução à ‘História da Historiografia Medieval - Novas Abordagens’. História da Historiografia, Ouro Preto, v. 13, n. 33, p. 19-37, maio-ago. 2020. DOI: https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1671.
SETH, Sanjay. Subject Lessons: The Western Education of Colonial India. Durham: Duke University Press, 2007.
Comentários
Postar um comentário