Uma Leitura Tragicômica de Sócrates à Luz da Crítica Nietzscheana





Resumo:
Esta breve reflexão propõe uma análise crítica, bem-humorada e séria da figura de Sócrates a partir da crítica de Friedrich Nietzsche, especialmente nos textos Crepúsculo dos Ídolos e A Gaia Ciência. Em diálogo com o Fédon, de Platão, e com o conceito de "moribundo" nietzscheano, busca-se desmistificar a "santificação" do filósofo ateniense e discutir o estado atual da humanidade à luz desses conceitos.

Certamente, vivemos um dos momentos mais tragicômicos da história. A humanidade, com toda sua parafernália tecnológica, às portas da colonização de outros planetas, deveria estar celebrando a vida e convivendo em harmonia, na plenitude de sua potência. Deveríamos ser, como diria Espinosa (2009), "a expressão mais alta da alegria e do conatus vital". Mas não: o que se vê é uma humanidade idiotizada, embrutecida pelas redes umbrais sociais, presa em ciclos de violência, fanatismo e estupidificação generalizada.

Nesse caldo cultural de superficialidade e cinismo, vê-se também o uso banalizado de grandes nomes do pensamento, como Nietzsche. Multidões que jamais abriram A Gaia Ciência ou o Crepúsculo dos Ídolos compartilham frases de efeito em redes anti-sociais, como se fossem evangelhos instantâneos. Recentemente, ao criticar Nietzsche num desses grupelhos virtuais, fui acusado de "inveja" do filósofo alemão. O que se pode esperar? É o fim da picada.

O fato é que o próprio Nietzsche é, em certo sentido, um "moribundo". Tal como Sócrates. Tal como todos nós neste mundo em estado avançado de decadência. A chave para compreender a crítica nietzscheana a Sócrates reside justamente nesse reconhecimento da "doença" — não apenas fisiológica, mas cultural e espiritual. Em Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche (2007) afirma:

"Sócrates foi o palhaço que se fez levar a sério" (NIETZSCHE, 2007, p. 45).

Para Nietzsche, Sócrates representa a decadência do espírito vital grego. Sua obsessão pela razão, pela dialética e pela moral é, na verdade, um sintoma de uma sociedade adoecida. A famosa equação socrática Razão = Virtude = Felicidade nada mais seria do que a tentativa desesperada de "manter a luz acesa" enquanto o corpo e a alma já se encontram em ruínas.

E Nietzsche vai mais longe. Em A Gaia Ciência, aforismo 340, ele interpreta as últimas palavras de Sócrates (“Devo um galo a Asclépio”) como uma confissão velada: viver é uma doença, e a morte, uma cura (NIETZSCHE, 2001). Sócrates, portanto, não seria um herói da razão, mas um moribundo dissimulado, cansado da vida, que maquiava seu niilismo sob o verniz de uma esperança pseudometafísica.

Platão, seu principal "beato", perpetua essa visão no Fédon, onde coloca na boca de Sócrates um discurso sobre a imortalidade da alma e a esperança após a morte (PLATÃO, 2006). É esse Sócrates que Nietzsche repudia: o Sócrates que, em nome de uma pretensa razão, renega os instintos, a corporeidade e a existência plena.

Como escreve o próprio Nietzsche:

"O fanatismo com que toda reflexão grega se lança à racionalidade trai uma situação desesperadora... Estava-se em risco, só se tinha uma escolha: perecer ou ser absurdamente racional" (NIETZSCHE, 2007, p. 47).

Sócrates, nesse sentido, é o precursor de uma tradição decadente, que depois será amplificada pelo platonismo e pelo cristianismo. Nietzsche, ao desmascarar tanto Sócrates quanto Jesus em suas obras, presta, de fato, um "serviço" à humanidade: ele expõe as bases do niilismo que se oculta sob a ilusão de moralidade superior.

É preciso, como Nietzsche sugere no final de A Gaia Ciência, superar também os gregos. Desmascarar os auto-ludibriadores, os eternos moribundos, e afirmar a vida tal como ela é: trágica, dionisíaca, sem promessas de salvação.


__________E. E-Kan

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Referências:


NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Trad. Paulo Cezar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos ou Como Filosofar com o Martelo. Trad. Paulo Cezar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

PLATÃO. Fédon. Trad. Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

SPINOZA, Baruch. Ética. Trad. Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autênntica, 2009.

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