Ateu à toa





"Pior que um ateu à toa

é um crente crentelho

Só que quase todo ateu à toa

se porta como o crente crentelho

dos crentes crentelhos

O ateu à toa crê radicalmente

que diante da imensidão

cósmica interestelar

da incomensurabilidade da vida

da inefabilidade da existência

não há nada mais, nem pode haver

Nada mais tragicômico..."

___Pior  que / In: livro Intimismo do F#d@-se / E.E-Kan


O Ateu à toa e um outro tipo de fanatismo

Resumo - Esta breve reflexão discute o surgimento do "fenômeno" contemporâneo do “ateu à toa” — aquele sujeito que, após declarar-se ateu, julga-se automaticamente iluminado, racionalmente superior e intelectualmente insuperável e, por isso, tragicômico. A partir da frase-aforismo “pior que um crente fanático é um ateu à toa”, propõe-se uma crítica ao ateísmo que se converte em identidade arrogante, dogmática e caricatural. Utilizando autores como Nietzsche, Chesterton, Dalrymple, Cioran e Umberto Eco, o texto argumenta que a ausência de fé em divindades não elimina o risco do fanatismo — apenas transfere o altar do transcendente para o ego inflado do sujeito. A tese central é simples, embora incômoda: o ateu à toa é o novo fanático, só que sem mitra, sem terço e sem a decência de admitir que acredita, sim — acredita piamente em si mesmo.

O nascimento do crente do não-crer

Tanto a crença cega quanto a descrença absoluta são inúteis — no fim das contas, servem mais para inflar o ego do que para iluminar o pensamento. Pior ainda é a obsessão de querer que os outros creiam ou deixem de crer nas mesmas coisas. Por aqui, seja em questões filosóficas, literárias, históricas, psicanalíticas ou da vida cotidiana, o conselho é sempre o mesmo: duvide. Duvide para compreender melhor. Todo espírito livre, autêntico Viajante da Luz na Escuridão busca o Esclarecimento, jamais a conversão. Que cada um forme suas próprias opiniões — e, mais importante ainda, que tenha coragem de expressá-las (sapere aude!). 

Na aurora do século XXI, em meio ao colapso das instituições, à bancarrota do discurso religioso tradicional e à ascensão das “ciências do eu”, surge uma nova cepa de crente: o ateu à toa. Não se trata do ateu filosófico, existencial, trágico — aquele que, como Camus ou Nietzsche, digere a ausência de Deus com angústia e lucidez. O ateu à toa é outro bicho: é o produto do algoritmo, da pós-ironia e do TikTok de divulgação científica. É um sujeito que se diz cético, mas que tem a certeza absoluta de que está certo. Que despreza os dogmas, mas idolatra sua própria opinião como se fosse Revelação no Monte Racional.

Como já advertia Nietzsche (2006, p. 45), “quem combate monstros deve cuidar para que não se torne também um monstro.” E o ateu à toa, ao combater o fanatismo religioso, transforma-se no espelho invertido do mesmo: um sacerdote da razão, devoto do sarcasmo, missionário da sua própria lucidez. Para ele, o simples ato de “não crer” já o coloca em patamar moral e intelectual superior — como se o cérebro dele fosse um santuário onde Darwin, Dawkins e o Doutor House celebram missa.

O altar virou espelho

A fé deslocou-se. Antes era voltada para o transcendente. Agora, é fé em si mesmo — e pior: fé na própria superioridade cognitiva. Como observa Chesterton (2008, p. 112), “o problema do homem moderno não é que ele não acredita em nada, mas que acredita em tudo — inclusive em si mesmo.” O ateísmo, então, deixa de ser posição filosófica e torna-se pose. O sujeito não acredita em Deus, mas acredita com fervor na própria ironia, nos memes científicos e na autoridade do Wikipédia.

Cioran (2011, p. 89), decano do niilismo com humor negro, aponta com precisão:

“Ser ateu é um privilégio que poucos sabem carregar sem ridículo.”

O ateu à toa carrega esse privilégio como quem carrega um troféu de campeonato que nunca disputou. Ele não reflete sobre a existência ou o vazio — ele apenas zomba. Sua incredulidade é rasa, sua linguagem é ensaiada, sua superioridade é performática.

A razão virou fé

A ilusão mais perigosa não é a fé em algo invisível — é a fé cega na própria razão. Dalrymple (2001, p. 66), ao analisar a patologia do pensamento moderno, identifica um fenômeno recorrente: a arrogância dos que acham que, por serem racionais, são moralmente superiores. Para ele, esse tipo de ateu é tão perigoso quanto qualquer fanático religioso, pois “sua fé na razão os impede de enxergar a própria ignorância.”

A essa altura, a crítica de Umberto Eco (2004, p. 78) é quase um salmo alternativo:

“A razão, quando dogmatizada, é tão perigosa quanto a fé cega.”

O ateu à toa dogmatiza a razão. Recusa a dúvida. Ri do outro como método de afirmação. Sua “racionalidade” é autorreferente: tudo que não cabe nela é desmerecido, zombado ou cancelado.

O novo inquisidor

Se o crente fanático quer queimar bruxas, o ateu à toa quer queimar tempo no Twitter humilhando quem acredita em algo. Ambos têm algo em comum: são incapazes de escutar. São devotos do próprio ponto de vista. A diferença é que um reza, e o outro compartilha vídeos do Neil deGrasse Tyson como se fossem evangelhos.

E isso, paradoxalmente, só mostra que Nietzsche ainda tinha razão: o problema não é matar Deus. É não saber o que fazer com o cadáver. O ateu à toa joga uma pá de terra em cima e planta uma placa: “Aqui jaz Deus. Aqui nasce meu ego.”

Considerações (quase) finais

A frase-aforismo que orienta este artigo — “pior que um crente fanático é um ateu à toa” — não é uma provocação vazia. É um espelho desconfortável. Porque o fanatismo, como vírus esperto, muta. E às vezes veste bata branca, cita Carl Sagan fora de contexto, e acha que ser ateu já é sinônimo de inteligência. Não é.

Crer ou não crer é irrelevante se o sujeito virou incapaz de rir de si mesmo, de ouvir o outro e de admitir que talvez, só talvez, esteja errado. O ateu à toa, no fundo, não é ateu. É apenas um crente disfarçado — crente de que ele próprio é Deus. E nesse caso, sim, melhor o crente fanático tradicional: pelo menos esse ainda sabe que é servo — e não a própria divindade.

Diz Raul Seixas, na música composta com Cláudio Roberto,"Que luz é essa?": 

"Que luz é essa, gente

Que vem chegando lá do céu

É a chave que abre a porta

Lá do quarto dos segredos

Vem mostrar que nunca é tarde

Vem provar que é sempre cedo

E que pra todo pecado sempre existe um perdão

Não tem certo nem errado

Todo mundo tem razão

E que o ponto de vista

É que é o ponto da questão

Que luz é essa que vem chegando lá do céu?

Com efeito, encerramos essa conversa, com as seguintes reflexões nossas, constantes no livro Filosofia Insólita:

O que é uma vida humana diante da imensidão cósmica interestelar, senão um milésimo de distração, num segundo de ironia, dum minuto da existência?

Diante da Imensidão Cósmica Interestelar, da Incomensurabilidade  da Vida e da Inefabilidade da Existência, ainda somos meras partículas  de poeira cósmica pensantes.

Diante da Imensidão Cósmica Interestelar, da Incomensurabilidade da Vida e da Inefabilidade da Existência, todo o nosso Conhecimento, a nossa mais pura e sincera forma de fé/crença, a nossa mais profunda Filosofia e a nossa mais elevada Ciência são ínfimos, tacanhos e não passam de uma pequena parte da infinitesimal partícula de poeira cósmica pensante que nós somos, em todos os sentidos.

A Vida, que é Luz, nasce da Escuridão e corre pelo Abismo em direção ao Vazio. Haverá alguma coisa para além do Vazio? Quem de fato poderá dizer? Não há nada mais? Quem, com certeza, saberá?

Pense... :) 



___E. E-Kan 

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Referências

CHESTERTON, G. K. Ortodoxia. São Paulo: Ecclesiae, 2008.

CIORAN, Emil. Silogismos da amargura. São Paulo: Rocco, 2011.

DALRYMPLE, Theodore. Life at the Bottom: The Worldview That Makes the Underclass. Chicago: Ivan R. Dee, 2001.

ECO, Umberto. Cinco Escritos Morais. Rio de Janeiro: Record, 2004.

NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

SEIXAS, Raul. Que Luz é Essa. Cifras.com. Disponível em: cifras.com.  Acessado em 16 Jul. 2025. 


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