Hoje, alguns camponeses não foram para os campos...



"Mais um dia na Idade Média do Século XXI...

Hoje, alguns camponeses não foram arar os campos... 

Se essa moda pega...

O mercado do mundo medievalesco vai surtar, a economia vai entrar em colapso...

Onde é que se viu, camponeses se rebelarem diante de tal modo de produção inspirado pela providência divina do Mercado, em toda a sua perfeição, com a sua pantanosa e desumanizadora mão invisível? 

Camponeses querem só um pouco de hedonismo e diversão? 

Nada disso. Só os abençoados pela providência divina podem ter essas coisas, porque assim ela o quer.

Camponeses, por mais que alguns não se achem camponeses, só servem a um propósito: trabalhar e manter toda a hedionda pirâmide social, em todos os tempos." __Kan 


A Nova Servidão da Era Neoliberal: camponeses digitais e a mão invisível do Mercado

Vivemos tempos curiosos. Em pleno século XXI, rodeados por algoritmos, inteligências artificiais e hiperconectividade, o mundo parece cada vez mais medieval. Não no sentido técnico ou tecnológico — mas na estrutura simbólica, política e social. O texto irônico de E. E-Kan serve como gatilho para pensarmos a permanência de estruturas de dominação que, embora recobertas com o verniz moderno do “livre mercado” e da “meritocracia”, reproduzem, em essência, as formas de sujeição típicas da Idade Média. Os "camponeses" de hoje não lavram terras com enxadas, mas operam sistemas, dirigem entregas, alimentam plataformas digitais — tudo isso sob a égide de uma nova servidão algorítmica.

A mão invisível (e pantanosa)

Adam Smith, ao propor a ideia da “mão invisível” (SMITH, 1983), acreditava em um mercado capaz de autorregulação, em que o interesse individual produziria benefícios coletivos. Contudo, como bem ironiza E-Kan, essa “mão invisível” se tornou pantanosa e desumanizadora, transformando-se numa espécie de divindade neoliberal que exige sacrifícios constantes dos trabalhadores precarizados. O “modo de produção inspirado pela providência divina do Mercado” lembra muito mais uma teocracia econômica do que uma racionalidade econômica moderna.

David Harvey (2005), ao tratar do neoliberalismo como uma restauração de poder de classe, mostra como a retórica da liberdade de mercado esconde a intensificação da exploração e o esvaziamento das esferas públicas. O Mercado, como entidade quase mística, substituiu Deus como força reguladora da sociedade. Como na Idade Média, os servos (agora, entregadores, freelancers, influencers, autônomos de aplicativo) devem aceitar seu papel no mundo — não por ordens clericais, mas por métricas e algoritmos.

Camponeses digitais em rebelião

O gesto simbólico dos “camponeses que não foram arar os campos”, evocado por E-Kan, é mais potente do que parece. Recusar o trabalho hoje é tão escandaloso quanto um servo medieval desobedecer seu senhor feudal. Silvia Federici (2017), ao analisar a transição do feudalismo para o capitalismo, mostra como a dominação sobre os corpos e a reprodução da força de trabalho foi essencial para consolidar um novo regime de exploração. A recusa ao trabalho, nesse sentido, é uma rebelião contra toda uma ordem sociometafísica.

Na contemporaneidade, o trabalho informal e fragmentado por plataformas digitais gera uma nova classe de trabalhadores: os "camponeses digitais". Estão por toda parte — conectados, mas isolados; com acesso à informação, mas sem poder efetivo de transformação. Quando esses sujeitos decidem “não arar os campos”, isto é, não produzir, não performar, não render, abrem-se brechas em um sistema que depende freneticamente de sua obediência e disponibilidade total.

Mercado como Religião

O filósofo Walter Benjamin já alertava, no início do século XX, que o capitalismo funciona como uma religião (BENJAMIN, 2011). Uma religião sem trégua, sem descanso, que impõe culpa, mas não oferece salvação. A crítica irônica de E-Kan é, portanto, uma crítica teológica e política ao mesmo tempo. Vivemos sob um regime de fé cega no Mercado, que exige sacrifícios cotidianos e promete, como o paraíso medieval, uma prosperidade futura que nunca chega.

Conclusão

A Idade Média do século XXI não é uma simples metáfora histórica — é uma crítica contundente à regressão civilizatória travestida de modernidade econômica. O “modo de produção inspirado pela providência divina do Mercado” mantém milhões de novos servos sob vigilância algorítmica, explorando corpos e mentes em nome de uma racionalidade inquestionável. Quando os camponeses se rebelam, quando recusam o arado digital, questionam não apenas o trabalho, mas o próprio sistema de crenças que sustenta essa nova servidão.

_____E. E-Kan 

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Referências:

BENJAMIN, Walter. Capitalismo como religião. In: LOWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. São Paulo: Boitempo, 2011.

FEDERICI, Silvia. O Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017.

HARVEY, David. O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Loyola, 2005.

SMITH, Adam. A riqueza das nações. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção Os Economistas).


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