A História e a trama do tempo segundo Descartes, Maquiavel, Vico e a Querela entre os Antigos e Modernos
Pensar a história é, antes de mais nada, pensar o tempo. E pensar o tempo é se perguntar: o que vale mais, a experiência acumulada ou a ousadia de romper com ela? Foi nesse campo de tensão que se inscreveram, com estilos e objetivos distintos, autores como René Descartes, Nicolau Maquiavel, Giambattista Vico e os intelectuais envolvidos na chamada Querela dos Antigos e dos Modernos. Cada um, a seu modo, respondeu à seguinte pergunta essencial: o passado é um guia confiável, um obstáculo ou apenas um espelho?
Descartes, figura central do racionalismo moderno, representa a ruptura mais radical com o passado enquanto fonte legítima de saber. Para ele, conhecimento verdadeiro não pode depender de tradições, da memória coletiva ou da erudição acumulada. O critério é a evidência racional, clara e distinta, que brota da razão ordenada. A história, nesse contexto, aparece como ruído — um acúmulo de opiniões, muitas vezes contraditórias, que apenas confundem o pensamento. O saber histórico é, para o filósofo francês, incerto, fragmentado e excessivamente dependente da autoridade de outros, o que contraria frontalmente o ideal cartesiano de autonomia do sujeito pensante. Em vez de confiar na experiência de épocas anteriores, Descartes propõe que o saber deve partir do zero, como se o mundo pudesse ser reconstruído do início por uma mente racional e solitária. Em termos mais diretos: para Descartes, a história atrasa o pensamento porque nos prende à repetição, ao que já foi dito, em vez de nos abrir ao que pode ser descoberto pela razão pura.
Na direção oposta, Maquiavel oferece uma valorização política e pragmática da história. Funcionário público e conhecedor dos bastidores do poder, ele não buscava verdades universais, mas lições práticas. Em sua obra, a história não é dispensável; pelo contrário, ela é essencial para compreender como os homens agem em diferentes conjunturas. O tempo, para ele, não é linear nem cíclico, mas uma sequência de ocasiões, onde a fortuna (sorte) e a virtù (capacidade de ação) se cruzam. A história serve como laboratório da experiência humana, e é observando os exemplos do passado — imperadores, traidores, tiranos, heróis — que se pode agir com mais precisão no presente. Enquanto Descartes procura a ordem eterna, Maquiavel mergulha no caos do tempo histórico, para extrair dele um método de ação. Para o florentino, quem ignora a história está condenado a repetir os mesmos erros, mas não como tragédia ou farsa, e sim como burrice política.
Giambattista Vico, por sua vez, propõe uma leitura ainda mais complexa e original da história. O napolitano, embora pouco reconhecido em vida, trouxe contribuições que reverberam até hoje. Ao contrário de Descartes, Vico vê o passado como o solo fecundo do conhecimento humano. Para ele, os homens fazem a história, e por isso ela é, ao mesmo tempo, racional e simbólica. A linguagem, os mitos, as instituições e os costumes são expressões do espírito humano em diferentes momentos. O tempo, segundo Vico, não é uma linha reta de progresso, mas uma espiral de repetições e variações — os cursos e recursos da história. Sua Ciência Nova parte da ideia de que entender o passado é, também, entender a natureza do humano. Contra o cartesianismo abstrato e universal, Vico oferece um humanismo histórico, que reconhece a diversidade das formas de vida e das culturas como parte constitutiva da verdade.
É nesse mesmo espírito de embate entre tradição e novidade que se insere a Querela dos Antigos e dos Modernos. Esse debate, que atravessou o século XVII e se aprofundou no XVIII, opôs aqueles que viam nos autores clássicos (gregos e romanos) o ápice da sabedoria, aos que defendiam a superioridade dos saberes modernos, ancorados na ciência, na técnica e na mudança de mentalidade. A disputa não era só estética ou literária: era, no fundo, sobre o que é o tempo. Os antigos eram vistos como mestres fundadores; os modernos, como seus herdeiros ousados. A metáfora dos “anões nos ombros de gigantes” sintetiza a tensão: ver mais longe seria possível graças à elevação proporcionada pelos antigos, mas também era um convite para ultrapassá-los. A modernidade, nesse contexto, nasce da rejeição parcial ao passado. Não se trata de esquecer os antigos, mas de superá-los — uma tentativa de cortar o cordão umbilical com a tradição para afirmar a singularidade do presente.
Em comum, todos esses autores e debates colocam a história no centro da disputa sobre o conhecimento e o poder. Para alguns, ela é um empecilho; para outros, uma fonte; para Vico, uma construção coletiva; para os modernos da Querela, um campo a ser superado. Essa divergência revela que a história nunca é neutra: ela é sempre o lugar de um confronto entre memórias, discursos e projetos de futuro. Pensar o tempo é também pensar a si mesmo — e é isso que esses autores fazem, cada um à sua maneira.
Em tempos onde a história é constantemente desvalorizada ou distorcida, voltar a esses debates ajuda a recolocar as coisas em perspectiva. Nem tudo do passado é lixo, como queria Descartes, nem tudo do presente é virtude, como crê parte dos modernos. O desafio está em compreender o tempo como algo que nos constitui — não para nos prender, mas para nos libertar com mais lucidez.
____E. E-Kan
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