Crítica contra a esquerda caviar e suas pautas falidas


A Tirania Identitária e o Antirracismo de Grife: Uma Crítica à Estetização da Dor na Luta de Classes

Resumo

Este artigo propõe uma crítica à apropriação do discurso antirracista por setores das elites políticas, culturais e econômicas, que transformaram pautas históricas de luta em instrumentos de marketing e governança simbólica. Ao recorrer a autores como Ruy Mauro Marini, Slavoj Žižek, Domenico Losurdo e Jessé Souza, argumenta-se que a estetização da opressão racial — promovida por uma “esquerda performática” — desmobiliza a crítica de base e reforça a lógica do capital. O texto não nega o racismo estrutural, mas denuncia sua coaptação por um discurso identitário esvaziado de conteúdo revolucionário. A partir disso, defende-se a reintegração da luta de classes como eixo central da crítica social contemporânea.

Palavras-chave: Racismo estrutural; Capitalismo; Identitarismo; Luta de classes; Estetização da política; Jessé Souza.


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No debate político contemporâneo, não é raro encontrar o antirracismo elevado à condição de produto premium. A luta contra a opressão racial, legítima e urgente, passou a integrar o menu gourmet de discursos vendáveis, apropriados por setores da elite midiática, empresarial e acadêmica. Essa apropriação não só despotencializa a força disruptiva do combate ao racismo, como o desloca do campo da transformação estrutural para o terreno da performance simbólica e da rentabilidade estética.

O problema não está em falar sobre racismo. O problema está em quem fala, como fala e, sobretudo, para quem se fala. Há um mercado em expansão — o da dor identitária. Uma economia da opressão representada por intelectuais-palco, ativistas de planilha e empresas multinacionais que inserem a “diversidade” como item de compliance e marketing. A favela continua afundada na lama, mas agora pode se orgulhar de ser representada por um comercial com trilha sonora afrocentrada, legenda inclusiva e slogan ESG.

Essa realidade não é uma invenção paranoica. Está ancorada em diagnósticos teóricos sólidos, produzidos por pensadores que compreendem a luta contra o capital como essencialmente totalizante, dialética e indivisível. Ruy Mauro Marini, em sua teoria da superexploração do trabalho na América Latina, demonstrou que o subdesenvolvimento não é uma falha do sistema, mas parte de seu funcionamento. A lógica capitalista dependente exige a precariedade constante da força de trabalho — e essa precariedade atinge todos os trabalhadores, ainda que com intensidades diferenciadas.

Contudo, o que se observa atualmente é uma substituição do paradigma marxista por uma lógica de “feudalismo da dor”: cada identidade reivindica um quinhão de sofrimento específico, ao qual se atribui exclusividade política. O resultado é a fragmentação da luta e a neutralização da revolta coletiva. A performance identitária ocupa o lugar do enfrentamento sistêmico. Como diria Slavoj Žižek, a luta antirracista — quando absorvida pela lógica do mercado e da governança global — torna-se funcional ao próprio sistema que pretende criticar. O capitalismo é perfeitamente capaz de tolerar e até promover discursos antirracistas, feministas ou LGBTQIANP+, desde que isso não afete sua estrutura de acumulação e exploração. Um banco pode colorir sua logo com as cores do orgulho, ao mesmo tempo em que financia despejos, precariza o trabalho e lucra com desigualdades profundas.

Domenico Losurdo vai além e mostra que essa simbiose entre discurso libertário e dominação econômica não é novidade. O liberalismo moderno — aquele mesmo que fundou as democracias contemporâneas — sempre conviveu bem com a exclusão, o colonialismo e a escravidão. O que temos hoje, com o avanço da “esquerda performática”, é a repetição da mesma lógica em roupagem supostamente progressista: defende-se a igualdade formal, enquanto se administra a desigualdade material. É uma esquerda de auditório, bem posicionada nas universidades, nos editais culturais e nas câmaras técnicas do poder, que evita a luta de classes como quem evita a goteira do teto recém-pintado.

É nesse ponto que a crítica de Jessé Souza se torna incontornável. Em obras como A Elite do Atraso e A Ralé Brasileira, Souza escancara como a elite brasileira construiu uma narrativa ideológica que invisibiliza a exploração da classe trabalhadora, reduzindo a desigualdade a um problema de “mérito” ou “cultura”. Para ele, o racismo no Brasil nunca foi combatido pela elite — pelo contrário, foi utilizado como tecnologia de reprodução da desigualdade social, disfarçada de “inferioridade moral” dos pobres. A elite nacional não tem projeto de nação — tem projeto de reprodução de privilégios. Segundo Jessé, o discurso da “democracia racial” e agora, seu reverso “woke”, servem ambos ao mesmo propósito: manter o povo dividido, enquanto os de cima seguem saqueando o Estado e blindando seus privilégios com verniz progressista.

Nada disso implica negar o racismo. Ao contrário: implica recusá-lo em sua forma mais perversa — aquela que, ao se vestir de antirracismo, neutraliza seu conteúdo transformador. No mundo real, o capital não vê cor, não vê gênero, não vê sexualidade. Ele vê funcionalidade e rentabilidade. É claro que o racismo continua operando como filtro, como tecnologia de exclusão. Mas o critério último, hoje, é o da utilidade econômica. E é por isso que tanto o negro quanto o branco pobres estão igualmente invisíveis na política pública, nos planos de governo e nas prioridades das elites. Não se trata de igualar experiências — mas de apontar que o inimigo comum se reconfigurou, e segue operando com brutalidade ainda maior.

O antirracismo real, o que nasce na carne viva da desigualdade, não cabe em campanhas publicitárias. Ele se expressa nas esquinas, nas greves, nos cadernos sujos de Carolina Maria de Jesus, e não nos editoriais de revista de moda. A revolução possível é aquela que recusa a estetização da dor e encara o capital como problema central — o capital que terceiriza, financia repressão, exporta miséria e lucra com todas as siglas do sofrimento humano. O resto é maquiagem, é cortina de fumaça, é distração para manter os mesmos no poder, agora com mais representatividade.

Em vez de colecionar hashtags e cargos comissionados, é preciso reconstruir a crítica de base: uma crítica que una o trabalhador negro ao trabalhador branco, o jovem LGBTQIA+ ao velho desempregado, o favelado ao sem-terra — todos esmagados pela mesma engrenagem. Isso não exige negar as diferenças, mas superá-las na ação comum. Se você é um progressista sério, sugiro que leia e estude mais Marx, e lacre menos, e use menos marketing. O que a esquerda séria, a esquerda de verdade - - - (que ainda tem o povo como sua base e que não se prostitui pelo dinheiro, cargos em comissão e as mil e uma mordomias do poder) como faz agora o falido Lulistão fanático - - - precisa, é: mais povo, menos palco. Mais luta, menos vitrine. Mais vivência nas ruas, e esquecer o academicismo anacrônico e seu intelectualismo de esquerda caviar. 


___E. E-Kan


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Referências

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 1960.

LOSURDO, Domenico. A luta de classes: uma história política e filosófica. São Paulo: Boitempo, 2022.

MARINI, Ruy Mauro. Dialética da Dependência. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020.

SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.

SOUZA, Jessé. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: UFMG, 2009.

ŽIŽEK, Slavoj. Problemas no Paraíso: do fim da história ao fim do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2018.

KAN, E. E. Cadernos Esquerdotônicos de um Negro que Não Usa Tênis Branco. Inédito, distribuído via redes autônomas de pensamento.

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