
A Idade Média, muitas vezes retratada como um mero período de trevas, é, na realidade, um dos instantes mais complexos, ricos e transformadores na história do Ocidente. Foi um período de reestruturação institucional, de (re)construção de relações pessoais, de organização social multiforme e de definição de uma nova consciência religiosa. A visão que temos dessa época é fruto tanto de preconceitos quanto de um anacronismo que ignora suas especificidades. A nova historiografia revela que estamos muito longe de um mero “vazio histórico”: temos, na Idade Média, um período onde se forjaram muitos dos mecanismos que marcaram o desenvolvimento das sociedades ocidentais.
Michel Rouche, em “A vida privada na conquista do Estado e da sociedade”, revela exatamente como o poder na Alta Idade Média se fundamentava nas relações pessoais, sendo fruto de redes de família, de vassalagem e de casamentos. A institucionalidade era fraca, sendo o direito fruto de negociações pessoais, quase que um pacto de família, que produzia tanto coesão quanto instabilidade. A terra era a principal fonte de riqueza, sendo que seu controle determinava a posição social. A mesma família que detinha um feudo era também a que administrava a justiça, que cobrava tributos e que organizava a defesa do território. A união, sendo fruto de casamentos, era a principal forma de garantir a sobrevivência, enquanto o poder central aparecia como uma ideia distante — quase como um espantalho que ninguém levava muito a sério, a não ser nas horas de conflito.
Jérôme Baschet, em “O Renascimento carolíngio”, propõe uma visão madura e complexificada dessa mesma época, mostrando que o feudalismo é fruto de um arranjo institucional inovador. Ele revela que o chamado Renascimento carolíngio não é um mero espasmo de arte, cultura ou ensino, como às vezes é resumido, mas um ponto de inflexão na organização social. A Igreja, junto às monarquias, deu forma às relações de poder, enquanto a cultura cristã se consolidava como um elemento de coesão nas comunidades. Foi um período de sincretismos, de apropriação de heranças romanas junto às tradições germânicas, que deu às comunidades um modelo institucional relativamente robusto. Foi exatamente essa combinação que deu às relações pessoais um pacto de assistência mútua, sendo que o poder já não era fruto apenas de violência, mas também de consentimento, de aliança, de parceria.
Georges Duby, em “Os Fundamentos (sécs. VII e VIII)”, joga luz nas condições materiais nas quais essa organização se deu. A terra era escassa, a produção baixa, a família trabalhava junto nas lavouras, enquanto o excedente era quase inexistente. A floresta ainda dominava vastos territórios, sendo tanto um lugar de perigo quanto uma fonte de alimentos. A pecuária aparecia como um pilar da produção, sendo que o arado puxado por bois era um dos mecanismos que aumentava o pouquinho que se produzia a cada colheita. Foi nessa situação de escassez que se formou o modelo de organização fundiária — a mesma organização que deu lugar às relações pessoais de vassalagem, sendo que o poder na Idade Média era fruto tanto de espadas quanto de arados.
Régine Pernoud, em “A organização social”, enfatiza o papel das comunidades de família na definição das relações de poder. A família era, de acordo com a autora, a unidade econômica, social e jurídica que concentrava tanto os direitos quanto os deveres de cada um. O patriarca aparecia como administrador, sendo o guardião das terra, enquanto os demais compartilhavam responsabilidades na produção. A vassalagem, fruto de um pacto de assistência mútua, revela que o poder na Idade Média se fundamentava nas relações pessoais, sendo que o vassalo receberia a terra, a proteção e o apoio jurídico, enquanto o senhor receberia a lealdade, o serviço nas armas e o fruto do trabalho. A mulher, embora excluída de muitos cargos, podia possuir terra, contratar arrendamentos e administrar o espólio, sendo, assim, um elo importante na organização social. A família aparecia como um espaço de parceria, sendo que tanto o marido quanto a mulher tinham responsabilidades na perpetuação do nome, na salvaguarda do Patrimônio e na definição das relações de poder.
André Vauchez, em “A gênese da espiritualidade medieval”, revela como o cristianismo se institucionaliza junto às comunidades, sendo a Igreja o elo moral que conferia coesão às relações pessoais. A confissão privada, a reverência às relíquias, o culto aos santos — tudo revela que o sagrado atravessava a vida social, sendo um modelo tanto de organização quanto de expressão da consciência moral. Vauchez destaca que o clero, principalmente nas mãos de bispos e abbades, usava o poder religioso para legitimar relações de poder, enquanto o povo se apropriava de ritos, imagens e festividades para dar conta de suas dificuldades. A Igreja não era um mero instrumento de dominação; era, na realidade, um espaço compartilhado onde diferentes grupos negociavam suas identidades. Foi assim que o cristianismo moldou tanto a moral quanto o direito, sendo ele um dos alicerces na construção das comunidades ocidentais.
Para concluir, segundo os textos lidos e estudados citados nessa breve empreitada acadêmica, a Idade Média revela-se como um período de permanente recriação institucional, ressignificação moral e religiosa. Foi um período de transições, de sincretismos, de negociações pessoais que deram às comunidades uma organização capaz de resistir às dificuldades materiais, às ameaças externas e às dúvidas pessoais. A família, a Igreja, o poder senhorial, o pacto de vassalagem, tudo revela um arranjo institucional fruto tanto de relações pessoais quanto de um modelo jurídico compartilhado. Longe de ser um mero período de trevas, a Idade Média, para esses autores, sob a luz dessa historiografia um tanto ‘progressista’, é também um período de luz, onde se forjam as bases do Ocidente — nas relações pessoais, nas comunidades de família, nas redes de vassalagem e nas experiências compartilhadas de fé. Foi exatamente dessa complexidade que surgiu o modelo institucional que marcaria a história ocidental nos séculos seguintes. Obviamente, não somos obrigados a concordar com tudo o que esses autores falam, mas podemos concordar em discordar, no sentido de dizer que a Idade Média (alta e baixa) compreendendo pouco mais de mil anos desde a queda de Roma em 476 d.C até a chegada de Colombo às Américas 1492 d.C, teve de tudo, mais um avanço na degradação humana mental, moral e espiritual, luz, trevas, muito sangue derramado sobre as terras européias através de muitas guerras, violência, brutalidade, roubalheira, corrupção, miséria, doenças, enfim, (parece até os nossos dias) só que sem internet e redes umbrais sociais, não é? Contudo, a humanidade ocidental consegue sair desse caldeirão diabólico e sinistro, rumo a uma ‘nova era’ de renascimento e novas desgraças, tragédias e matanças. Depois, sai de novo de uma era de novas desgraças, passa a Revolução Industrial, Francesa, Russa com ‘novas velhas promessas’ de ‘dias melhores’ e, no entanto, advém mais desgraças, mais guerras, mais matanças com a I Grande Guerra Mundial, depois a II Guerra Mundial, e então, novamente, renovam-se as utopias de ‘dias melhores’ e cá estamos em 2025, após 86 anos de outras tantas matanças, epidemias, pandemias e misérias em novas guerras no pós-II Guerra Mundial, à beira de uma III Guerra Mundial, rumo à possibilidade de um suicídio global e extermínio de grande parte da humanidade, senão a detonação de todo o Planeta e todas as formas de vida. Ou seja, percebe que ‘desde sempre’ a humanidade vive tentando de matar e não acha jeito? A humanidade sempre comete os mesmos erros, até o dia que não terá mais como se safar dos erros cometidos. Por fim, observemos que a supervalorização otimista da Idade Média pelos autores, querendo mostrar mais ‘o lado bom da coisa’, se repete hoje em dia, ou seja, estamos literalmente na ‘estrada para o inferno’, mas tem gente ‘otimista’ achando, pensando, dizendo e escrevendo que ‘apesar de tudo, tudo vai ficar bem no final.’ Não vai. Sabemos que não. O caos sempre vem, e ‘o inverno está chegando’. A coletividade dos animais falantes que se acham pensantes parece nunca conseguir sair dessa espiral de queda, caos, destruição e morte enquanto flerta com a própria extinção/aniquilação total. Mas, podemos fingir e abraçar uma falsa esperança, para suportar a vida nesse mundo cão, (onde 1% da humanidade detém — desde muito antes da Idade Média, de maneira hedionda— 99% das riquezas da Terra e seus meios de produção, fazendo ferver a panela de pressão da mega bolha do abismo social de misérias, injustiças e abusos criminosos que um dia explodirá, levando o caos total pelo oceano de sangue e terror em toda a parte). Então, diante da realidade brutal, podemos fingir que ‘tudo vai ficar bem’, que ‘a vida sempre ressignifica’ e, assim, viver a vida mais um dia de cada vez. E sim, podemos concordar em discordar sobre isso tudo, como o fazemos em relação à ‘visão otimista e progressista’ da Idade Média. Não é?
Referências:
ROUCHE, Michel. “A vida privada na conquista do Estado e da sociedade”. In: DUBY, Georges; ARIÈS, Philippe (dir.). História da vida privada, II. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.
BASCHET, Jérôme. “O Renascimento carolíngio”. In: ___ A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006, p. 67-97.
DUBY, Georges. “Os Fundamentos (sécs. VII e VIII)”. In: ___ Guerreiros e camponeses: os primórdios do crescimento econômico europeu (VII e XII). Lisboa: Estampa, 1980.
PERNAUD, Régine. “A organização social”. In: ___ Luz sobre a Idade Média. Lisboa: Europa-América, p. 13-45.
VAUCHEZ, André. “A gênese da espiritualidade medieval”. In: ___ A espiritualidade da Idade Média Ocidental. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 11-30.
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