Teoria do “Mundo Além, Cão”
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Autoria: Ê Kan, autor brasileiro.
A Teoria do “Mundo Além, Cão” que introduzo aqui, surge como uma proposta filosófica que busca romper com as narrativas tradicionais e idealizadas a respeito da vida após a morte. Ao contrário da visão amplamente difundida, que projeta o além como um espaço de paz, harmonia e justiça compensatória, essa teoria defende que o plano espiritual não rompe, mas sim prolonga e aprofunda as estruturas de dominação, desigualdade e conflito presentes na existência terrena. Trata-se de uma ontologia realista sobre a temática extrafísica, que se propõe a pensar o além não como redenção, mas como reflexo e espelho ampliado do que se vive aqui. Isto é, o mundo cão continua cão, no além; com todas as suas várias variáveis, tragédias, comédias, tragicomédias, violências, injustiças, misérias, mas também, com as infinitas possibilidades do mistério incomensurável e inefável que está contido no que entendemos como Vida.
Refletindo com as ideias de Thomas Hobbes, essa nossa teoria parte do princípio de que o ser humano permanece, mesmo após a morte, envolto em disputas por sobrevivência, espaço e prestígio. Para Hobbes, no estado de natureza, a vida humana é marcada por uma guerra constante de todos contra todos (bellum omnium contra omnes) e por um medo permanente do outro (HOBBES, 1974).
Se essa é a natureza fundamental da existência, é coerente supor que, no mundo espiritual, tais disputas apenas se deslocam de nível, convertendo-se em batalhas simbólicas, energéticas ou vibracionais. O “além”, portanto, não seria um reino de ordem celestial, nem infernal, mas celestial, infernal, purgatorial, umbral e outras coisas além, num vasto campo de forças, de lutas invisíveis, onde milhões de consciências disputam, tal como na Terra, na vida intrafísica, por um lugar à luz.
Essa luta é agravada quando consideramos a reflexão de Nicolau Maquiavel sobre a natureza humana. Para o pensador florentino, os indivíduos agem motivados pelo interesse e pelo desejo de manter o poder. Virtudes, moralidade, pretensa espiritualidade e justiça são estratégias políticas, e não fins em si mesmos (MAQUIAVEL, 2012).
A mesma lógica pode ser projetada no plano espiritual: as elites extrafísicas — consciências mais influentes, conscientes ou estrategicamente posicionadas — possivelmente mantêm seus privilégios e estruturas de domínio não por mérito iluminado, mas pela manutenção do poder simbólico. Os “espiritualmente endinheirados (energizados)” não apenas desfrutariam da paz superior, mas contariam com verdadeiras estruturas de proteção, forças auxiliares e redes de influência no plano invisível.
Nesse sentido, introduz-se a hipótese de um capitalismo espiritual — uma forma sofisticada de estrutura de dominação energética, onde os mecanismos de exclusão não desaparecem após a morte, mas ganham novos contornos. Tal como na vida material o capital financeiro determina o acesso a recursos, direitos e segurança; no mundo espiritual o que define o lugar de cada consciência é o acúmulo de capital simbólico-espiritual: saber, méritos acumulados, vibração elevada, alianças extrafísicas, pureza kármica ou status espiritual. Essa proposta dialoga com a noção de capital simbólico, conforme formulada por Pierre Bourdieu, para quem as diferentes formas de capital (econômico, cultural, social e simbólico) operam como instrumentos de reprodução das desigualdades (BOURDIEU, 2004). No “mundo além, cão”, essa lógica é transplantada para uma economia da salvação, na qual o acesso à luz e à paz seria privilégio de poucos — e não um direito universal.
O resultado é um mundo espiritual funcionalmente semelhante ao nosso: altamente hierarquizado, competitivo, desigual. Milhões de consciências vagam em zonas de dor, confusão e repetição — umbrais, purgatórios, regiões sombrias — sem acesso à transcendência. Ou pior, são colocadas em dimensões onde acham que estão transcendendo, evoluindo, mas, na verdade, é só repetição da repetição, como num eterno retorno sádico, macabro e sinistro, milhões de vezes pior que qualquer inferno visitado por Dante ou produzido pela indústria cinematográfica. Imagine uma vida que se repete se cessar, com as mesmas coisas boas e ruins, nos menores detalhes? Gerando e movimentando 'energia' sem parar, alimentando o sistema controlado pelas 'elites extrafísicas', que se acham donas do Planeta e talvez até da Galáxia, intrafísica e extrafisicamente.
Com efeito, o sofrimento, nesse modelo, não é superado com a morte, mas apenas reconfigurado em outros moldes. Essa concepção também encontra ressonância na filosofia de Arthur Schopenhauer, para quem o sofrimento é a essência da vida, e a vontade — cega, incessante — é o motor de uma existência que oscila entre a dor e o tédio (SCHOPENHAUER, 2001). A morte, longe de encerrar essa dinâmica, apenas prolonga sua atuação em outros domínios da existência. Emil Cioran, por sua vez, ironiza a esperança escatológica ao afirmar que “o além se parece demais com o aquém” (CIORAN, 2013), desconstruindo a ideia de redenção automática como fantasia reconfortante.
Essa visão não se encerra em um niilismo absoluto. Apesar do diagnóstico duro e brutal da realidade espiritual, a Teoria do “Mundo Além, Cão” aponta um princípio transformador possível: o Amor. Não o amor banalizado pelas convenções românticas, mas o Amor como Lei Cósmica, como força ética e energética que pode ressignificar toda a lógica da existência. Esse Amor transcende a luta por poder, desestabiliza em certa medida a pirâmide espiritual e age como contrapeso à brutalidade do sistema. Contudo, não transforma o sistema brutal em um sistema bonzinho. Trata-se mais de uma força de aceitação, resgate e cura, que pode libertar as consciências, individual e coletivamente, da eterna repetição de sofrimento e competição. Em Nietzsche, isso se aproxima do amor fati — o amor ao destino —, uma aceitação ativa da vida como ela é, mesmo diante do absurdo (NIETZSCHE, 2003). Esse Amor, quando vivido profundamente, torna-se lanterna no abismo, verbo vivo no deserto da Incomensurabilidade Cósmica. A chama que ilumina os perigosos e tortuosos caminhos do Viajante da Luz na Escuridão.
A Teoria do “Mundo Além, Cão”, portanto, não pretende negar o espiritual. Pelo contrário: propõe uma espiritualidade crítica, lúcida e consciente, que reconhece que nem tudo que está “além” é automaticamente elevado. Trata-se de uma provocação filosófica para pensarmos que talvez o verdadeiro céu não esteja lá fora, mas na forma como agimos, sentimos e nos relacionamos — aqui e agora, em todas as camadas do Ser. E se, no fim de tudo, ainda houver livros, boas conversas, gatos e cachorros, talvez o além seja suportável. Se não houver nada, então, é bom que esse nada, seja um grande nada. Afinal, como todo o universo intrafísico, até mesmo a Incomensurabilidade Cósmica, incluindo os multi-universos extrafísicos e todas as dimensões, um dia colapsarão.
Os 7 princípios da 'Teoria do Mundo Além, cão':
1 - O Além é uma continuidade das estruturas de dominação da vida terrena.
2 - Predomina uma constante 'competição/luta espiritual' de todos contra todos, em diversas camadas, tal como no estado natural hobbesiano. Há bons lugares, maus lugares; seres bons, maus, de todo tipo, com as mais variadas intenções.
3 - A natureza humana, essencialmente má e movida por interesses, permanece ativa no Além. Isto é, também há corrupção, escravização, injustiças, misérias, abusos criminosos, abismo social.
4 - Aqueles que detêm o poder no mundo espiritual têm privilégios, proteção e influência. E como nesse mundo instrafísico, menos de 1% detém 99% das riquezas daquele mundo e as formas de obtê-las, deixando o resto, bilhões de seres, numa luta absurda por um lugar à luz.
5 - Os que não detêm poder e influência, sobretudo, os que se rebelam contra o sistema extrafísico vigente, vagam em zonas de dor, repetição e exclusão, num ciclo ressomatório/reencarnatório de repetição sem fim. Pouquíssimos e raríssimos conseguem romper com esses ciclos repetitivos.
6 - O Amor é uma força verdadeiramente transgressora, capaz de ressignificar a própria lógica do Ser e Existência do Ser. É uma tábua de salvação nesse 'mundo além, cão', mas pode ser muito mais.
7 - Tudo colapsará um dia — inclusive a Incomensurabilidade Cósmica com todos os mundos e dimensões possíveis. O que ocorrerá depois do Colapso Final? Quem poderá dizer? Quem saberá?
E. E-Kan
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Referências
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Record, 2018.
CIORAN, Emil. Breviário de decomposição. Tradução de José Thomaz Brum. São Paulo: Rocco, 2013.
HOBBES, Thomas. Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Os Pensadores)
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Tradução de Lívio Xavier. São Paulo: Martin Claret, 2012.
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Tradução de Jair Barboza. São Paulo: UNESP, 2001.
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