Trabalho em grupo na universidade e violência pedagógica
Resumo
Este artigo problematiza a obrigatoriedade de trabalhos em grupo no ensino superior público brasileiro, analisando os impactos negativos que essa prática exerce sobre discentes cujas realidades pessoais e horários de estudo são incompatíveis com a lógica coletiva imposta institucionalmente. A partir de fundamentos constitucionais, legais e pedagógicos, argumenta-se que a imposição de atividades grupais sem alternativa individual fere o princípio da igualdade de condições de permanência (art. 3º da LDB), o direito ao pleno desenvolvimento pessoal (art. 205 da CF) e configura uma forma de violência metodológica mascarada de prática inclusiva. Com base em autores como Hannah Arendt, Paulo Freire, Raymond Aron e nos documentos normativos do MEC, o artigo defende o direito à autonomia discente, à avaliação individual justa e à liberdade de pensamento no ambiente acadêmico.
Palavras-chave: trabalho em grupo, autonomia do aluno, violência pedagógica, ensino superior, avaliação, direitos do discente.
A violência pedagógica do coletivismo obrigatório: o direito à avaliação individual no ensino superior brasileiro
1. Introdução
No discurso oficial das universidades públicas brasileiras, a figura do aluno como sujeito central do processo pedagógico é amplamente defendida. Termos como protagonismo discente, ensino centrado no estudante e metodologias ativas tornaram-se parte do vocabulário institucional, refletindo as Diretrizes Curriculares Nacionais e os marcos legais da educação brasileira. Contudo, na prática cotidiana das salas de aula, o que se observa é a contradição gritante entre tais princípios e a imposição de práticas avaliativas que desconsideram as realidades individuais — em especial, o famigerado trabalho em grupo obrigatório.
2. A obrigatoriedade do trabalho em grupo: entre o discurso da inclusão e a prática da exclusão
A obrigatoriedade de trabalhos em grupo, aplicada de maneira inflexível, é comumente defendida sob o argumento da promoção de competências coletivas. Contudo, esta prática frequentemente:
ignora as diferenças reais entre os estudantes;
desconsidera conflitos de horários que inviabilizam a participação efetiva;
mascara desigualdades internas no grupo, onde frequentemente um ou dois realizam todo o trabalho;
e, não raro, serve de instrumento para apagar vozes dissonantes do pensamento majoritário na sala.
Nas palavras de Raymond Aron (1987), quando a universidade se torna uma extensão de ideologias de massa, o espaço do debate dá lugar à “religião secular do consenso”. Nesse sentido, o trabalho em grupo, em vez de ser espaço de convivência dialógica, transforma-se em mecanismo de padronização do comportamento e da opinião.
3. O direito à avaliação individual e a realidade do aluno trabalhador
A situação torna-se ainda mais grave quando o aluno, por questões objetivas — como a incompatibilidade de horários com os colegas — não consegue participar das atividades grupais. Tal situação, infelizmente comum, gera:
exclusão indireta;
risco de nota zero;
constrangimento público;
e desrespeito ao direito de permanecer na universidade em igualdade de condições.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 205, estabelece que:
“A educação é direito de todos e dever do Estado e da família, sendo promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”
Já a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB, Lei 9.394/96), em seu artigo 3º, afirma:
“O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
IV – respeito à liberdade e apreço à tolerância.”
Impor ao aluno um modelo único de avaliação, sem considerar sua agenda de trabalho, transporte, família ou outros compromissos legítimos, não apenas viola tais dispositivos legais, como também representa uma forma de discriminação estrutural silenciosa.
4. A pedagogia da coerção disfarçada de inclusão
O que se apresenta como “método inclusivo” frequentemente se revela como uma nova forma de exclusão — mais sutil, mais sofisticada, porém igualmente opressora. O discurso da coletividade, sem alternativas para o indivíduo, se transforma em um dogma pedagógico. Como afirma Hannah Arendt (1971), a educação deve “preservar a natalidade do pensamento”, e não submetê-la a formas coletivas de conformismo institucionalizado.
Nesse sentido, Paulo Freire (1996) — ironicamente citado pelos próprios agentes da opressão metodológica — adverte:
“Ensinar exige respeito à autonomia do ser do educando.”
Não há respeito à autonomia quando o aluno é obrigado a aceitar um modelo único de avaliação que, por motivos concretos, o prejudica.
5. A autonomia universitária não é autorização para autoritarismo didático
A autonomia universitária, garantida no artigo 207 da Constituição Federal, não pode ser usada como escudo para práticas inflexíveis e insensíveis. Ao contrário, a autonomia implica responsabilidade pedagógica ampliada, compromisso com a diversidade de perfis discentes e disposição institucional para acolher demandas legítimas de avaliação alternativa.
A manutenção de métodos obrigatórios sem margem de escolha transforma-se em autoritarismo metodológico, expressão de um “coletivismo forçado” que anula a individualidade sob o pretexto da convivência.
6. Considerações finais: em defesa da liberdade de aprender
Recusar-se a participar de trabalhos em grupo não é recusar-se a aprender. Ao contrário, é exigir o direito de aprender com dignidade, de ser avaliado de forma justa, de ter sua individualidade respeitada.
O aluno que, por motivos de horários de trabalho, logísticos, éticos, filosóficos, psicológicos, neuro divergentes, opta pela avaliação individual, não deve ser punido, ignorado ou rotulado. Ele deve ser ouvido e acolhido. E mais do que isso: deve ser respeitado.
Em suma, defendemos aqui apenas o equilíbrio nas relações entre professores e acadêmicos, desejosos de ver a coerência institucional funcionando na prática com o próprio discurso que a universidade pública diz seguir: inclusão, pluralidade e respeito à diversidade.
___E. E-Kan
Referências
ARON, Raymond. O Ópio dos Intelectuais. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1971.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: jul. 2025.
BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: jul. 2025.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
Imagem: https://br.pinterest.com/pin/762726886917226736/
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